C&A
Adentrar a grande calçada no sábado
depois da madrugada. Um sol tímido, sobre uma cidade explicitamente
conservadora. Todos os passantes praticamente sem boca, restam os olhos
fugidios na parte superior dos seus corpos circulantes. Naquele silêncio
caótico, a rua parece um leito de rio de correnteza rápida, quase não tem som
sob a água, exceto para os especializados. Pessoas peixes, lojas pedras, líquido viver. Perto do almoço, como um cachorro
com verde no bar Mignon, cada vez menor e mais caro como acontece com os
desodorantes masculinos. Faço o restante que tenho, vou para a praça do ônibus.
Lá, uma senhora, aparentando uns cinquenta e tantos anos, ao lado do ponto. Não
poderei descrevê-la, dada a minha ignorância têxtil para com o vestuário feminino. Sei que ela usava
uma espécie de burca, mas não parecia ser muçulmana, talvez por causa de uma
moda que também desconheço. Ela subiu no coletivo depois de todos, inclusive
dos mais novos. Sentou-se em minha frente, pude ver ou imaginar que ela era
bonita, magra, elegante, na certa era cheirosa. Talvez seu SUV estivesse na
revisão. Ou ela pensava como eu, e abandonou o automóvel em casa para ir ao centro, trazendo um pouco de bom senso à mobilidade urbana. Um sujeito feito professor universitário, de uns 35 anos, fenótipo de
Indiana Jones mas com pisante moderninho, sentou-se ao seu lado. Perguntou educadamente
a ela, se ela era árabe. Surpresa, a madame disse que não, apenas estava assim
por razão de saúde. Ele pediu desculpas. Após o aceitamento, ela devolveu a
ele, que o carro estava cheio de lugares vazios, e se ele havia sentado ali para perguntar aquilo. Sem reação, o homem permaneceu calado e então mudou de
lugar. Ele também havia achado ela interessante, só que ao contrário de mim, foi
lá. Era seu expediente, abordar desejos. Eu, nunca vou lá. Nem acho mais gente interessante tão interessante assim. Na verdade, eu aborto os meus desejos, eles são instantaneamente efêmeros, nem passam da roleta da consciência, morrem na campainha, na praia, no petit-pavé ou no chão do convencional. Aliás, nunca fui
atrás. Mas não sou objeto da crônica, volto à senhora sabatina. O lenço preto. Lembrei-me
da Dra Shadia e seus lenços brancos de Cirurgiã-Dentista. A mesma elegância, porquês diferentes. Shadia voltaria para o Líbano, prometida para o filho desconhecido
de um amigo de seu pai, ainda existe isso. A mulher do ônibus não tinha
alianças em suas mãos. Relacionava-se agora, com sua doença, e numa outra
dimensão existencial. Pensei nas pessoas e nos enfrentamentos de seus revezes. Que
pode se deixar a coisa menos densa e tensa do que já é, basta empregar a forma certa
para tanto. A forma com que se trata, ou o instrumento que se utiliza na lida real, é o
principal problema da humanidade. Até aquilo que é ruim, necessita ser tratado de
uma forma adequada. Ela usava óculos escuros de lentes muito grandes, ocultando
o desenho dos olhos e eventuais lágrimas, ou apenas a disfarçar as conjuntivas vermelhas. Eu queria
saber mais dela, aquela senhora do lenço na cabeça. Saber como ela se conduz perante tal
doença. Mas eu segui em silêncio capital; na eterna dúvida entre socializar e importunar, fico com a educação da distância mantida. Ela desceu num ponto qualquer do caminho,
quem sabe em função do tratamento. Pensei em mim. Em meu novo óculos escuro, que comprei no centro hoje de manhã. Pensei em meu caminho. E se há alguma diferença
no território dos pontos por onde eu passo e não desço...
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