A Vida Em Segundo Lugar
Seres em potência. Sociedade, um só
organismo enclausurando estes seres, que acabam não sendo. Permanecem
latentes em seus sonhos, têm suas esperanças recolhidas, suas capacidades
escondidas bem longe do funcionamento do primeiro motor. Outros, discutem
política, sexo, esporte e religião com a habilidade dos leigos, sempre juízes.
Ignoram a infinitude do mundo diante de sua desprezível dimensão individual,
fazendo do espaço ao redor a única região habitável e meritíssima do planeta.
Ai, ai... quem não tem cavalo, monta no pai. E quem não tem pai? Dentro do
estacionamento da loja de materiais, o Audi avançou na contramão, quase
atropelando um casal. O sujeito na boleia estava com pressa. A mesma pressa dos
apressadinhos matinais que preferem dormir quinze minutos a mais e depois
compensar o tempo ganho ou perdido com velocidade excessiva no trânsito. Estes,
são uns daqueles, os que têm o umbigo coladinho com a genitália, distúrbios de identidade
prazerosa, coisas da dopamina perturbada. Ele tinha reservado por telefone o último lote de cerâmicas que
revestiriam o novo piso da cozinha de seu AP, agora com espaço gourmet, quebraram-se algumas: o pedreiro aguardava em sua casa com sua
mulher, filhos na escola daquela manhã. Wilson Ricochete corria apenas para não
deixar o lar com um estranho e sem dono, jamais pensaria que sua esposa tão
recatada pudesse estar fazendo sexo oral na lavanderia com o dotado e cabeçudo
trabalhador, enquanto ele cruzava irresponsavelmente sinais vermelhos lá fora, arriscando a saúde de pedestres indefesos. Nunca,
a clássica cena dela trepada e trepando sobre a máquina de lavar roupa ligada
para disfarçar gemidos e suspiros no condomínio, passaria na tela de sua mente chauvinista.
Um executivo de sucesso como ele, não faria jus a tal galhada (somente em sua ótica de vida). Betina aproveitava e gozava a cada momento raro desses. Seu marido tinha lhe convencido quando moça, a abandonar a
faculdade de Farmácia, prometeu e cumpriu prosperidade, bastava ela no lar. Mas a vida dela ficou
vazia, sem profissão, sem dificuldades, sem resoluções das coisas, sem experiência, só latência. Vivia bem, até o dia em
que descobriu mensagens não apagadas no aplicativo dele, trocando juras de amor com
uma profissional da web. Como não tinha saída, resolveu ficar e dar o troco,
direitos iguais. Poderia ela, Betina, ter sido uma excelente Bioquímica. O pedreiro
José Luis desistiu do vestibular para Engenharia, o supletivo do ensino médio era dispendioso. Wilson, seria um bom
Traumatologista, caso fosse Médico poderia ter noções mínimas de alteridade. E Paulinha, a call girl, era uma ótima
cozinheira, quem sabe chefe de cozinha. Todos, diferentes do empresário. Mas
igualmente a ele, perderam-se em seus caminhos. A felicidade é mesmo uma
convenção: afastamos o que não conseguimos ser dos nossos sonhos, julgando-nos
incapazes para determinada função, sufocando nossa autoestima. Se fizemos isso com nossas profissões, o que dizer sobre o mundo relacional? Entramos no primeiro ônibus. Fosse melhor,
ter ido a pé. A mulher que eu amei, poderia muito bem ter aprendido a tocar
violão...