quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

Crônica Cotidiana 28



Combo 

Uma rede multinacional de lanches rápidos, menos poderosa, quase figurante no ramo da pseudoalimentação. Águias comem ratos, aculturação e velocidade na praça daqui. No estabelecimento, pessoas que acreditam estarem ingerindo natureza no quadrante do almoço que nem hora mais é. Mas dá tempo de engolir combinações, mesmo sem a mastigação devida, afinal é assim com tudo na vida. Aguardei a infante servir-se, enquanto ‘roubava’ tudo ao redor de nossa mesa limpa por mim: personagens, genuínas, levei-as para a casa do meu pensamento. Essas moças, pobres moças, ah se soubessem o que eu escrevo. A primeira, em luta evidente contra sua silhueta arredondada, mordendo saladas num momento libertário de dieta social imposta pelos padronizados modelos do devir. Mais uns vinte quilos a menos, e ela estaria na pista sem instrumentos de pouso para aproximação do homem macho, objeto de desejo de quase toda relação possessória e vice-versa. Depois daquela mesa, um grupo de ex-estudantes modernizava-se deslizando impressões digitais em seus telemóveis, hoje parte integrante do corpo, extensão fundamental para seres de pequeno alcance. Trocavam risadas entre incursões tão descartáveis quanto o papel higiênico que faltava no banheiro: o conteúdo não era marrom, ele simplesmente não tinha cor, mas eles não saberiam disso, talvez jamais. Noutra mesa, a mãe e a filha pequena de colégio. Onde estaria o pai? Haveria um pai na história delas? Ou teria morrido, talvez fugido, quiçá sido sucumbido pela libido? A filha olhava a comida, a mãe observava atenta pela janela uma árvore lá fora, quem sabe se perguntando onde estaria a natureza de viver naquela cidade. Quando a minha terminou, alcançou-me quase metade do seu sanduíche, embrulhei e fui dar um destino diferente àquele desperdício. Um guardador de carros com um colete reluzente de listras horizontais cor de limão, estava de costas para a via, apoiado num portão arrumando o pé de sua muleta. Pedi licença e lhe perguntei se aceitava parte de um almoço. O que para alguém é resto, sobra, excesso, para alguns é tudo. Baixo, manco, uma pele que parecia outra árvore no tempo. Sem intervalo para me olhar nos olhos, estendeu a mão e pegou a oferta, foi logo levando à boca depois de um agradecimento em sussurro. Saí dali segurando lágrimas de revolta contra os poderes da República: eles não precisam da vida do cuidador, somente de seu voto. Seria melhor se ele fosse um robô, que assumisse os deveres da pessoa humana, e esta viesse a inexistir. Um robô, não precisaria dos dentes que aquele homem perdeu da boca, hoje mastigando como um bagre ribeirinho qualquer. Comentei com minha pequena sobre o mundo. Espero que ela tenha aprendido duas lições: o desperdício versus a fome, e o encabulamento versus a solidariedade. Ela percebeu que ele não sorria. Mas eu não contei que era assim durante todo o dia e em todos os dias. Enquanto o maltrapilho se arrastava para entre aspas cuidar dos automóveis, togados muito longe dali comemoravam mais um auxílio, desta vez o moradia. Não havia cães perto da loja. O cão dessa história, é o próprio mundo de uma pessoa... 


Nenhum comentário:

Postar um comentário