Combo
Uma rede
multinacional de lanches rápidos, menos poderosa, quase figurante no ramo da
pseudoalimentação. Águias comem ratos, aculturação e velocidade na praça daqui.
No estabelecimento, pessoas que acreditam estarem ingerindo natureza no
quadrante do almoço que nem hora mais é. Mas dá tempo de engolir combinações,
mesmo sem a mastigação devida, afinal é assim com tudo na vida. Aguardei a
infante servir-se, enquanto ‘roubava’ tudo ao redor de nossa mesa limpa por
mim: personagens, genuínas, levei-as para a casa do meu pensamento. Essas moças, pobres moças, ah se soubessem o que eu escrevo. A primeira, em luta evidente contra sua silhueta
arredondada, mordendo saladas num momento libertário de dieta social imposta
pelos padronizados modelos do devir. Mais uns vinte quilos a menos, e ela estaria na pista
sem instrumentos de pouso para aproximação do homem macho, objeto de desejo de
quase toda relação possessória e vice-versa. Depois daquela mesa, um grupo de ex-estudantes
modernizava-se deslizando impressões digitais em seus telemóveis, hoje parte
integrante do corpo, extensão fundamental para seres de pequeno alcance. Trocavam risadas entre incursões tão descartáveis quanto o
papel higiênico que faltava no banheiro: o conteúdo não era marrom, ele
simplesmente não tinha cor, mas eles não saberiam disso, talvez jamais. Noutra mesa,
a mãe e a filha pequena de colégio. Onde estaria o pai? Haveria um pai na
história delas? Ou teria morrido, talvez fugido, quiçá sido sucumbido pela
libido? A filha olhava a comida, a mãe observava atenta pela janela uma árvore lá fora, quem sabe se perguntando onde estaria a natureza de viver naquela cidade.
Quando a minha terminou, alcançou-me quase metade do seu sanduíche, embrulhei e
fui dar um destino diferente àquele desperdício. Um guardador de carros com um
colete reluzente de listras horizontais cor de limão, estava de costas para a
via, apoiado num portão arrumando o pé de sua muleta. Pedi licença e lhe
perguntei se aceitava parte de um almoço. O que para alguém é resto, sobra,
excesso, para alguns é tudo. Baixo, manco, uma pele que parecia outra árvore no
tempo. Sem intervalo para me olhar nos olhos, estendeu a mão e pegou a oferta, foi
logo levando à boca depois de um agradecimento em sussurro. Saí dali segurando
lágrimas de revolta contra os poderes da República: eles não precisam da vida
do cuidador, somente de seu voto. Seria melhor se ele fosse um robô, que
assumisse os deveres da pessoa humana, e esta viesse a inexistir. Um robô, não
precisaria dos dentes que aquele homem perdeu da boca, hoje mastigando como um bagre ribeirinho qualquer. Comentei com minha pequena sobre o mundo. Espero que ela tenha aprendido
duas lições: o desperdício versus a fome, e o encabulamento versus a
solidariedade. Ela percebeu que ele não sorria. Mas eu não contei que era assim
durante todo o dia e em todos os dias. Enquanto o maltrapilho se arrastava para entre aspas cuidar
dos automóveis, togados muito longe dali comemoravam mais um auxílio, desta vez
o moradia. Não havia cães perto da loja. O cão dessa história, é o próprio mundo de uma
pessoa...
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