domingo, 6 de dezembro de 2015

Crônica Cotidiana 26



Quatro comprimidos mais duas cápsulas na mão esquerda. Um pouco de água mineral no copo que foi de requeijão um dia. Assim começaria mais uma jornada noturna de vigília, naquela outra segunda-feira insone. A madrugada semanal mais deserta da cidade, e o quarto se enchia de luz apagada. Noite em que toda atividade será castigada, roubou do dramaturgo e adaptou ao seu calvário estelar. Como se pudéssemos dormir ou ficar acordados da cama olhando os astros e seus acessórios no breu do firmamento, sem nenhum empecilho. Fora de ordem, os edifícios, as cortinas, as árvores e as nuvens se revezam em obstáculos do tempo e no espaço. Tudo desligado, menos o seu forte metabolismo. Corpo estendido na horizontal sob a fina coberta, aguardava alguns minutos para ficar de lado. Preferia o coração para baixo, embora ouvira no rádio que assim, para a esquerda, havia mais pressão sobre aquele ainda ingênuo órgão, como se estivesse sobrecarregando-o, então um prejuízo à saúde. Ingênuo por não ter dito à sua última amada, que ela o fizera desacreditar no amor em definitivo: ela nem merecia saber disso, mas ele deveria ter falado. Entretanto, era o inverso: isso vale para o estômago, oposto no abdome, devendo ficar para a direita evitando complicar digestão. Caso se virasse assim, estaria voltado para a janela. O terceiro blackout mais barato dentre cinco trazia uma translucidez poética àquele ambiente do quarto. Silêncio quebrado pelos uivos de uns cães vizinhos que necessitam chamar a atenção feito alarme de presença, mesmo que seja um gato, uma folha ou até um viralata no exercício de sua liberdade, ainda que não plena. Não, porque o animal não tem consciência disso, muitos de nós também não temos: chamamos nossos nós de laços, para fugir um pouco do cárcere real que são nossos relacionamentos. Em fase REM permanente, os olhos cerrados acendiam a visão de seu consciente, compensando o martírio de ficar acordado até o amanhecer. Via o que não observava de dia. Percebia o que não sentia, e reconhecia que ninguém mais viria. Contribuiu significativamente para que o universo ao seu redor fosse um imenso buraco negro. Renegou sóis, ignorou luares, desprezou estrelas. Portanto, tudo era vazio e amorfo e infinito. Ou inodoro, incolor e insípido. Via que sua vida era mesmo assim. E a cada noite de segunda-feira que cruzava, aumentava sua certeza de não precisar mais nada saber, de não ter que aprender mais alguma coisa. Sendo assim, qual o sentido desta aula extra? Reconhecer a existência pedagógica do calendário, é mesmo para poucos. Cruzar madrugadas, é algo a ver com docência. Um mestre invisível, a nos ensinar o que pensamos já saber, ou teimamos em deixar para as próximas manhãs. As cápsulas acabaram, é preciso comprar mais... 


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