domingo, 6 de dezembro de 2015

Crônica Cotidiana 27



O Gordo na Lona 

Ela disse para a Fulana que passou pela vida, e não criou raízes. Há tempos, havia se separado de quase todos os seus parentes, restando apenas uma irmã, com a qual convivia em vizinhança. Mas não sabia o que significava família. Aquele bando de gente com laços sanguíneos, que se reúne de vez em quando, ela nem fazia noção do que era. Tímida por motivo de força maior, evitava festas familiares e relacionais por sentir uma espécie de amputação social, ela dizia. Não se sentia bem naqueles ambientes alheios, rodeados de alegria e continuidade. Lugares onde as pessoas deixavam os podres sob os tapetes e móveis, atrás dos eletrodomésticos, exalando de uma simples lavanda a um Chanel n º 5; varia apenas a casta, o resto era tudo igual. Exposição, jamais! Mas bem que podia ter um parente próximo para dividir a verdade de sua intimidade infeliz. Um namorado morto atropelado em acidente no início da juventude, seguido por um marido possessivo, que se apresentava feito holligan, agia como ogro e tinha biótipo de neonazista, preenchia a única página de seu currículo afetivo ou, no máximo, relacional. O gordo usava barba rala e cavanhaque, para disfarçar a arrogância explícita em sua cara de pau de cacto do serrado. Larissa, analogia de uma pet bonitinha adestrada conforme o dono, amarrada com uma corrente invisível para todos (menos para ela}, sabia exatamente o local das marcas em sua pele morena. Exposição, jamais. Caso tivesse parentesco, um ente par para dividir a sua verdade, poderia recorrer a este para ajudar a livrar-se do gordo, o qual provavelmente havia sido uma orca na encarnação passada; ela, uma ingênua foca banhando-se com toda sua inocência à beira-mar. Não aguentava tudo aquilo, era como se se repetisse algo que já vivera, um deja vu teimoso e entristecedor. As reuniões eram assim evitadas, pois não queria que a realidade de sua casa se estendesse para além do martírio habitacional. Exposição. Tinha vergonha. Mas a vergonha que é atrelada ao medo, é extremamente perigosa: tende, sem avisos, a tomar inesperada e fatalmente uma direção, sempre com radicalismo de atitudes, se não for assim, não se consegue mudar. Odiava a condução pública daquela sua intimidade infeliz, preferia ficar no cárcere, assim não corria riscos de que os outros descobrissem o mundo real em seus olhos belos e tristes, em seu sorriso aconchegante e artificial. Outro sábado. Aniversário de alguém, mais um churrasco. E só foram porque tinha comida na faixa, o clímax segundo daquele homem sem H. Gordo já assumira sua posição na boca da churrasqueira, mirante de onde avistava a todos e principalmente o redor de sua presa, refém ou estimadinha por ele amestrada. Entre uma linguiça, uma asinha de frango e dezenas de baforadas de tabaco paraguaio, disparava olhares ameaçadores sobre sua fêmea, não sem a vontade pseudoincubada de esbofetear todo e qualquer ser que tivesse pênis naquele local. Ousassem se aproximar da sua possuída, começava a triturar os ossos do frango sem fechar a boca, dirigindo-se à ela a sussurrar ameaças das mais violentas, feito estas das televisões noturnas onde vale tudo menos se chamar de esporte. Ela, aprendeu a evaporar lágrimas antes mesmo que chegassem às suas pálpebras, uma adaptação ambiental tal qual os esquimós do Alasca fazem com a dor do frio. Seu choro era contido, sofrimento de torneira fechada, caixa dos olhos transbordando tipo problema hidráulico em residência nova: Larissa era muito nova, pouco vivera a ponto de criar experiências, juntas histórias e agregar possibilidades em sua vida obstaculizada pelo seu caso fortuito. Uma vez, num momento raro de recolhimento no trabalho, escondida no almoxarifado, Fulana a encontrou quase em posição fetal sobre um banco de sentar; após perguntar o motivo daquele instante, ouviu dela, que apesar de tudo ela amava o gordo. Uma dentre inúmeras, esta é a saga de tantas mulheres que passam pela própria vida, sem mesmo vivê-la. Fazem do trabalho diário sua catarse, fechando o coração à tardinha preparando-se para chegar em casa e sobreviver a mais uma noite de possessões. Abria as pernas para aquele nojento, que depois de tirar sua vinilona Sansuy, subia sobre ela tipo animal planet e em cinco minutos ejaculava toda a sua carga, diz-se, oligospermia genética dentro dela, mililitros de involução. Uma força descomunal tirada não se sabia de onde para lubrificar a vagina e o marido de união estável não reclamar por dificuldade de penetração com seu pequeno pinto, uma seringa de 2 cc escondida numa palheiro de banha, o objeto de repulsa que ela delegava função de acolhimento somente ao seu ventre: não olhava, não pegava, saber daquilo enjoava. Na festa, em pleno suspiro de liberdade vigiada, ela arriscou uma menção ao aniversariante, fazendo-se ouvir por todos, em breve e policiada mensagem oral: Gordo mudou de cor, tirou um espeto de coração do fogo e pôs inteiro no pão francês: um ato mais do que simbólico do que ele fazia e jamais deixaria de fazer com ela. Aquele gesto, depois dos parabéns, foi uma gota no imaginário oceano de Larissa, que pretendia um dia navegar, para bem longe dali. Quem sabe, até avistar um outro horizonte. Tal qual aquela poesia que dizia sobre “o desejo de desejar que esta mesma vida fosse outra”. De volta à prisão, ele forçou sexo. Amolecido, interrompeu tirania para ir defecar pela terceira vez o tanto que comera na festa. Troglodita, peidava corações mortos no trajeto até o vaso, cheiro de decomposição no ar da casa que não era lar. Ela virou de bruços. Soltou uma lágrima. Opa: havia soltado a voz. Sem família por perto, viu várias amizades. “Uma nova ótica. Uma outra ética”, cantarolava Troy na sua cabeceira invisível. O caminho para sua felicidade, estava dentro dela, sem passar pelo Gordo: o que é então que significa criar raízes? “Hallelujah”, solfejava Rufus ao seu redor: sinais de um novo tempo... 


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