Mil novecentos e noventa e dois, dezembro. Comando do
Quinto Distrito Naval do Rio Grande, último dia do ano. Eu, de serviço na
unidade junto com alguns praças: um sargento, um cabo, um marinheiro e o taifeiro,
além do fuzileiro naval na guarita de entrada. O resto do pessoal já havia ido
embora, mais de centena. Naquela tarde, conduzi novamente o cerimonial de recolhimento da
bandeira, estava escurecendo. Apareceu outro sargento solicitando que a viatura
pegasse a esposa dele num bairro da cidade, ele também estava de serviço, mas
na Capitania dos Portos, ao lado. Consenti. A pistola 9mm em minha cintura era apenas um adereço na
decoração da farda militar. Permaneci no quarto do oficial de serviço lendo
algum livro (talvez fosse Blavatski) até que vieram pedir que eu liberasse a
geladeira do rancho, pois quase todos os praças de serviço na Capitania iriam
comemorar ali com seus parentes, fora os quatro do Comando, eles precisavam
dos refrigerantes que o intendente negara pela manhã. Impossível repetir o ato
dele, ainda mais vindo de um subordinado 2º Tenente, eu era 1º. Um silêncio
sepulcral, fui dar uma volta pela OM (organização militar), por dentro e por
fora. Na segunda sessão, verifiquei que os navios do Comando estavam devidamente
plotados, em terra. Lá fora, nada se mexia, além dos pássaros que bebericavam
no canal. Voltei, fui à Praça D’Armas, o refeitório dos oficiais. Liguei a TV e o taifeiro perguntou que
horas eu queria a ceia de ano novo, pedi que servisse às 23. Quinze minutos antes, dirigi-me
ao rancho, todos já estavam sentados com suas mulheres e crianças, umas trinta pessoas. Desejei-lhes um feliz novo ano, repleto de realizações e
esperança, já que o governo Collor representou os dois piores anos das Forças
Armadas em toda a sua história. Saí dali, eles começaram a cear. Quando voltei,
o taifeiro deixou a bandeja com a ceia e minha tradicional água com gás sobre a mesa,
desejou-me feliz 93, pediu licença e recolheu-se aos seus colegas no rancho. Antes de comer,
sentei-me no sofá, desliguei a TV e chorei um pouco. Por aquele povo que
trabalhava de serviço numa data tão especial, impedido de estar em casa com
mais parentes. Refleti sobre meu futuro. Jantei, vi a passagem de ano na TV a única vez em minha vida e
fui dormir.
Dois mil e dezessete, dezembro. Caverna do Tarumã em
Curitiba, último dia do ano. O desafio. Driblei a todos, não muitos, mas o
suficiente. Aloquei pessoas, inventei destinos, realizei mentiras. Tudo na mais
sutil arte do embuste, o engano. Claro, que sem ferir ninguém. E consegui, o
triunfo de minha solidão. Nesta virada do ano, livrei-me de tudo e de todos,
para ficar sozinho. Pela primeira vez, resolvi
experimentar uma situação semelhante à de 1992, só que tomada de vazios, todos. Reflito sobre meu presente, já não há mais futuro. Tanta
coisa aconteceu de lá até aqui, passaram-se 25 anos. Trabalhei em três estados,
cinco cidades, nove empregos, serviço público em todas as esferas de governo, clínicas particulares e grupos de saúde, e agora uma empreitada. Casei, fui pai duas
vezes, me divorciei. Fiz outra faculdade. Morreu um dos meus dois cachorros. Raras
paixões, nenhum amor, sexo suficiente. Mas o que mais me chama atenção nessa
noite de virada de ano, não é uma mesa com brasileiros ceando longe de suas
casas. É a falta de diálogo das pessoas neste momento nacional. É certo que o
golpe dividiu a sociedade. É certo que a tecnologia afastou as pessoas criando
vácuos artificiais na sociedade. Mas tudo isso é errado, penso eu. E não
poderei resolver. Então, eu concluo planos para este meu presente-próximo. Então
eu revisito minha garagem de valores, meu porão de verdades e meu sótão de
afetos. Como um astronauta, subo rumo a 2018 numa cápsula tão reduzida, que
quase posso ver quem são as pessoas que sobraram em minha vida. Naquela mesa do
Comando, eram 30. Nesta mesa imaginária de hoje, sem contar comigo, são 5: duas
filhas, minha mãe e um amigo. A meia-noite chega, os foguetes começam, a cadela Buba corre para
dentro. No mundo inteiro, pessoas comemoram presencialmente a entrada do ano
novo. Aqui, neste mundinho meu, não comemoro isolado pensando em minhas filhas e na
mãe. E choro. Não de tristeza, mas de sensibilidade. Porque ainda arde em mim
uma ausência. Então, minhas lágrimas em formato de rio, deslocam-se para o mar, eu já disse isso.
O mar, é a minha ausência. É o quinto elemento em minha mesa imaginária. E as lágrimas vão indo por simples espontaneidade da natureza. Sem tristeza, mágoa, rancor ou
ressentimento, pois tenho a consciência de que eu não haveria de ser amado: apenas, "porque não tinha que ser". Basta-me aquela ausência, para escrever, percorrer a
natureza e chorar quando for preciso. A solidão, é talvez a mais bela forma de
reconhecer quem está mesmo ausente em nossa vida. Não há ninguém aqui, posso até perguntar em voz alta, sobre algo que já aprendi. Mar, onde está você?...
Poesia incidental:
“Consolei-me, voltando ao sol e à chuva
E sentando-me outra vez à porta de casa.
Os campos, afinal, não são tão verdes para os que são amados
Os campos, afinal, não são tão verdes para os que são amados
Como para os que não são.
Sentir é estar distraído.”
- Alberto Caeiro
Nenhum comentário:
Postar um comentário