sábado, 30 de dezembro de 2017

Dois Tempos da Eterna Solidão


Mil novecentos e noventa e dois, dezembro. Comando do Quinto Distrito Naval do Rio Grande, último dia do ano. Eu, de serviço na unidade junto com alguns praças: um sargento, um cabo, um marinheiro e o taifeiro, além do fuzileiro naval na guarita de entrada. O resto do pessoal já havia ido embora, mais de centena. Naquela tarde, conduzi novamente o cerimonial de recolhimento da bandeira, estava escurecendo. Apareceu outro sargento solicitando que a viatura pegasse a esposa dele num bairro da cidade, ele também estava de serviço, mas na Capitania dos Portos, ao lado. Consenti. A pistola 9mm em minha cintura era apenas um adereço na decoração da farda militar. Permaneci no quarto do oficial de serviço lendo algum livro (talvez fosse Blavatski) até que vieram pedir que eu liberasse a geladeira do rancho, pois quase todos os praças de serviço na Capitania iriam comemorar ali com seus parentes, fora os quatro do Comando, eles precisavam dos refrigerantes que o intendente negara pela manhã. Impossível repetir o ato dele, ainda mais vindo de um subordinado 2º Tenente, eu era 1º. Um silêncio sepulcral, fui dar uma volta pela OM (organização militar), por dentro e por fora. Na segunda sessão, verifiquei que os navios do Comando estavam devidamente plotados, em terra. Lá fora, nada se mexia, além dos pássaros que bebericavam no canal. Voltei, fui à Praça D’Armas, o refeitório dos oficiais. Liguei a TV e o taifeiro perguntou que horas eu queria a ceia de ano novo, pedi que servisse às 23. Quinze minutos antes, dirigi-me ao rancho, todos já estavam sentados com suas mulheres e crianças, umas trinta pessoas. Desejei-lhes um feliz novo ano, repleto de realizações e esperança, já que o governo Collor representou os dois piores anos das Forças Armadas em toda a sua história. Saí dali, eles começaram a cear. Quando voltei, o taifeiro deixou a bandeja com a ceia e minha tradicional água com gás sobre a mesa, desejou-me feliz 93, pediu licença e recolheu-se aos seus colegas no rancho. Antes de comer, sentei-me no sofá, desliguei a TV e chorei um pouco. Por aquele povo que trabalhava de serviço numa data tão especial, impedido de estar em casa com mais parentes. Refleti sobre meu futuro. Jantei, vi a passagem de ano na TV a única vez em minha vida e fui dormir.  

Dois mil e dezessete, dezembro. Caverna do Tarumã em Curitiba, último dia do ano. O desafio. Driblei a todos, não muitos, mas o suficiente. Aloquei pessoas, inventei destinos, realizei mentiras. Tudo na mais sutil arte do embuste, o engano. Claro, que sem ferir ninguém. E consegui, o triunfo de minha solidão. Nesta virada do ano, livrei-me de tudo e de todos, para ficar sozinho. Pela primeira vez, resolvi experimentar uma situação semelhante à de 1992, só que tomada de vazios, todos. Reflito sobre meu presente, já não há mais futuro. Tanta coisa aconteceu de lá até aqui, passaram-se 25 anos. Trabalhei em três estados, cinco cidades, nove empregos, serviço público em todas as esferas de governo, clínicas particulares e grupos de saúde, e agora uma empreitada. Casei, fui pai duas vezes, me divorciei. Fiz outra faculdade. Morreu um dos meus dois cachorros. Raras paixões, nenhum amor, sexo suficiente. Mas o que mais me chama atenção nessa noite de virada de ano, não é uma mesa com brasileiros ceando longe de suas casas. É a falta de diálogo das pessoas neste momento nacional. É certo que o golpe dividiu a sociedade. É certo que a tecnologia afastou as pessoas criando vácuos artificiais na sociedade. Mas tudo isso é errado, penso eu. E não poderei resolver. Então, eu concluo planos para este meu presente-próximo. Então eu revisito minha garagem de valores, meu porão de verdades e meu sótão de afetos. Como um astronauta, subo rumo a 2018 numa cápsula tão reduzida, que quase posso ver quem são as pessoas que sobraram em minha vida. Naquela mesa do Comando, eram 30. Nesta mesa imaginária de hoje, sem contar comigo, são 5: duas filhas, minha mãe e um amigo. A meia-noite chega, os foguetes começam, a cadela Buba corre para dentro. No mundo inteiro, pessoas comemoram presencialmente a entrada do ano novo. Aqui, neste mundinho meu, não comemoro isolado pensando em minhas filhas e na mãe. E choro. Não de tristeza, mas de sensibilidade. Porque ainda arde em mim uma ausência. Então, minhas lágrimas em formato de rio, deslocam-se para o mar, eu já disse isso. O mar, é a minha ausência. É o quinto elemento em minha mesa imaginária. E as lágrimas vão indo por simples espontaneidade da natureza. Sem tristeza, mágoa, rancor ou ressentimento, pois tenho a consciência de que eu não haveria de ser amado: apenas, "porque não tinha que ser". Basta-me aquela ausência, para escrever, percorrer a natureza e chorar quando for preciso. A solidão, é talvez a mais bela forma de reconhecer quem está mesmo ausente em nossa vida. Não há ninguém aqui, posso até perguntar em voz alta, sobre algo que já aprendi. Mar, onde está você?... 

 Poesia incidental: 
 “Consolei-me, voltando ao sol e à chuva 
 E sentando-me outra vez à porta de casa. 
 Os campos, afinal, não são tão verdes para os que são amados 
 Como para os que não são. 
 Sentir é estar distraído.” 
 - Alberto Caeiro  





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