Um Lugar ao Sol
Eu fui feliz ali. Não se pode deixar de reconhecer que o
tempo em que moramos com nossos filhos, é um tempo feliz. Ou foi. Ou era, tanto
faz a perfeição do pretérito. Tratar o passado com respeito, é o mínimo que se
pode fazer quando se chega ao futuro. A lembrança, é uma caixa forte que
levamos na caçamba do coração. O despertar das crianças, chamando-as para o
dia, para a vida, era coisa sem igual. Trocar fraldas, era engraçado, fiquei
habilitado. A preocupação no banho dos nenês, para não ocorrerem acidentes. A temperatura
das mamadeiras, a sopa de vegetais de liquidificador, o primeiro churrasco, um
sarro. Vesti-las, uma novela. O primeiro cachorro, o segundo. Cinemas,
passeios, viagens, praias e sorvetes, churros, pastéis, lanchonetes e restaurantes
perto ou longe dali. Os aniversários, quanta bagunça, com decorações e camas
elásticas e as primeiras amiguinhas e amiguinhos. Aliás, tudo era engraçado,
para quem se fazia de palhaço tentando mostrar que a vida era um mar
cor-de-rosa. Até as tempestades inundantes, os sóis escaldantes, que espaço
legal naquele tempo. Olhar aqueles anjos dormindo e tê-las que acordar para os
seus minicompromissos. A tentativa com as vans não deu certo. Porque o certo é
simples: levar e pegar na escola, nunca faltei. A casona de bonecas, um tesouro
no jardim dos fundos, tinha até luz. Algumas piscinas de plástico deram certo,
outras não. Incontáveis churrascos, teve até caranguejo. Rede de praia, tinha. Muita
filmagem. Jogos de futebol, tiveram seu espaço animado. A sala de visitas, que
orgulho, os natais. E as aranhas marrons da sala de estar? Casa grande, com laje, piso de
taco. A cozinha que deixava um pouco a desejar, trocou-se o piso. Roupas no
varal, ao lado do canil, que saudade. Três ninhadas, vinte e nove filhotes,
labradores todos pretos, nenhum chocolate ou caramelo. Brincadeiras e
correrias, choros e gritarias. Fui pai presente. Sempre ensinando, jamais obrigando
nem brigando, mas apontando entre causas e consequências. Proteção e carinho, sustento
na medida do possível. Abdicar da vida lá fora para criar rebentos em casa, é
transcendental. Mas o que eu não esqueço, é da hora de levá-las para a cama. Contar
estórias, que não podiam ser repetidas, tornei-me um inventor de estórias. Mas
sempre com personagens ocultos até elas descobrirem quem eram os camponeses, as
rainhas, reis e príncipes, todos conhecidos. Depois da descoberta, o sono. E quantas
vezes peguei no sono durante uma narração, sendo imediatamente acordado
por elas. Essa interface sono/realidade, após o boa-noite com amor, educação, tranquilidade
e segurança, é uma das pedras fundamentais de um lar. Quando fui embora e as
deixei no portão, foi o pior dia de minha vida. Nunca houve nem haverá algo
igual. Nunca mais eu fui dormir direito. Não há aconchego se longe dos rebentos, partes de nós soltas no mundo. Finjo que toda noite eu não lembro da
imagem delas abraçadas no portão naquela noite de despedida. Mas já não finjo mais para elas
que a vida é um mar cor-de-rosa. Elas sabem do mar, do azul e das outras cores. Hoje, bem
orientadas, vão aos poucos desenhando e pintando seu próprio caminho. Sabem dos
valores que o pai deixou feito legado. Dentre outros, a importância da presença, pelo exercício da companhia de um pai com um filho, por exemplo. Só espero que reconheçam, quando preciso
for, que um dia também foram felizes ali. Mas e agora? Agora o futuro tem
redes, mas são virtuais. As caçambas são de plástico e as caixas fortes são de
vidro. Todo dia eu passo lá na frente, ainda moro perto. Pena que não deu tempo para falarmos sobre música e poesia, política e religião: paciência, é um lamento que eu entrego ao vento. Não reclamo da vida. Raramente,
a registro em caráter pessoal. Nesta, como que em agradecimento, uma espécie de menção por respeito
ao passado. Porque ali, um dia eu fui feliz. “Boi, pega o Memo, boi pega a
Liz... boi pega o Memo, boi pega quem quis...”
música incidental
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