quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Marília no Divã




- Pois bem. Diga-me o que é que há. 
- Solidão, dr. Eu já não aguento mais, é muito tempo de solidão. 
- Mas que tipo de solidão você vive? 
- Ué, tem essa coisa de tipos de solidão? 
- Sim, existem quatro variantes de solidão. 
- Quais são? Eu nem imaginava isso... 
- A primeira, é a solidão que se sente por ausência de um determinado alguém. A segunda, é a solidão que se sente pela falta de qualquer um. A terceira, é a solidão que se sente pela distância de você mesma. E a última, é a solidão que se sente pela sua estranheza em relação à coletividade. Qual é a sua? 
- Hum...sei não. É um pouco da primeira, tenho saudade de um tempo com uma pessoa especial. Mas às vezes é também a segunda, pelos momentos que passo sozinha, sem conversar com ninguém. Cabe ainda a terceira, porque nestes momentos eu choro muito, pois não consigo me encontrar. Mas a última...pode ser , é difícil achar quem me compreenda e principalmente porque vejo tanta gente junto feliz por aí, só eu que não... 
- Se você tem mais de uma dessas, é porque não é solidão. Mesmo que seja apenas um pouco de cada uma, ou de mais de uma. Isso porque uma anula a outra, o ser humano é muito pequeno para ter mais de uma solidão, não cabe. Veja sim, quanta gente cabe em você: aquela pessoa especial, todos os outros conhecidos que não estão por perto, todos os casais que você vê juntos... 
- Mas o dr pulou a terceira solidão. 
- Sim, pois nos outros tipos, prova-se que você tem bastante gente em sua vida, podia não haver ninguém. 
- E no terceiro? 
- Você pode estar distante de si mesma. Mas poderia ser pior: você não ter como se buscar aí dentro. Não ter para onde ir... 
- Então o sr quer dizer que eu não sofro de solidão? 
- Sim. A solidão não traz sofrimento. O que faz sofrer, é apenas a imaginação. É uma questão de redirecionar o pensamento. Pense nisso. 
- Mas se eu pensar, imaginar, então eu acabo sofrendo. 
- Basta que você pare de pensar. Saia para a vida, vá lá fora. Tome sol, chuva, ônibus, carona, café. Tome água, chás, sucos, vitaminas. Tome invertidas, poeira, esbarrões, na cara, vergonha. Tome ar! Mas tome alguma coisa. Algo que não venha de você, que parta lá de fora, de qualquer lugar. 
- Mas e o meu mundo interno, onde fica, o que fazer dele? 
- Seu mundo interno será mundo só quando você dividi-lo. Não necessariamente com outra pessoa, mas sim no espaço: viva o seu mundo interno, também fora de sua casa. Você não tem problemas com o tempo, é apenas uma questão de espaço. 
- E se a solidão for junto comigo lá para fora? 
- Apresente-a a alguém. 
- Para quê? 
- Para que ela morra um pouco a cada olhar. A cada voz, sabor, cheiro, tato. A cada passeio, cinema, bar, teatro, dança. Aniversário, festa, parque, exposição, jogo. Rio, praia, campo, livro, música. Baile, circo, feira, lanche, gole. Nuvem, paisagem, árvore, cor, flor. Pássaro, cão, zoo, inseto, gente. Arrepio, cócega, suspiro, dor, tesão. Salão, loja, academia, suor, sexo. Há incontáveis grupos de cinco sentidos por aí. Não importando se você esteja acompanhada ou não. Quando vir, de tanto viver, ela já não mais estará ao seu redor. 
- Isso é mágica? 
- Não, é a penas a sua missão. 
- Qual? 
- Viver a sua beleza. Mais nada. Se beleza fosse estoque, não haveria prateleiras nos supermercados... 
- Mas eu pensei que a minha beleza fosse um tesouro. Então eu queria dá-la para alguém guardar. 
- Aí deixará de ser tesouro, para ser mero objeto. De nada adianta alguém ser belo, maravilhoso, solar, se restar inerte e noturno atrás da alguma montanha. 
- Tem razão. O que devo fazer então? 
- Comece a amanhecer... 


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