segunda-feira, 24 de novembro de 2014

CONTOS sob o vento lunar / +


 NOVA SOLIDÃO 



Não consigo compreendê-la, mas tentarei. Essa quase gente que me acompanha, um semiespírito que me guarda, sem matéria nem alma, é muito mais do que alguém cantando por perto. Som que chega nas horas mais difíceis, quando o organismo inteiro volta cem por cento da minha sensibilidade para a audição de algo que confortasse, ela vem. E se é sempre assim, por que motivo eu a chamaria de nova? Se estou mais velho, eu a mereceria? Ou será que ela já amadureceu muito antes de mim? Não, não é uma questão temporal. Minha solidão não possui registro geral, cadastro na humanidade, é um ser inanimado que pulula o redor dos solitários cidadãos, referencial particular de espaço. Mas há aqueles que não a reconhecem, recusam até mesmo em perceber tal individualidade paralela. Eu não, tenho a ela como fraterna. É bem vinda, dou-lhe abrigo, repouso, principalmente à noite quando ela surge no meu escuro total. Parece cansada, alcanço-lhe cobertas e dois travesseiros fofos com fronhas cheirosas em cama grande e macia. Cerro os olhos e a admiro, começando a entendê-la. É mesmo, ela esteve por todo o dia ao meu lado, eu não sabia. Desde o despertar, ela me segue por onde vou, me fala como penso, me ouve quando sinto. Ela está presente nos meus sentidos, na percepção do mundo, da vida, das gentes, das coisas, dos fatos e do impossível. Orienta meus sonhos, contraindica remédios, alimentos, condutas, pessoas e amores. Aponta caminhos e comportamentos. Explica-me baixinho as razões de tudo, evidencia mistérios, sugere respostas para que eu as encontre. Penso que ela tem parentesco com minha consciência, nível de primeiro grau. Mas ela não é a minha própria consciência. Porque esta, às vezes brada sem voz, bate sem tato, chora sem cor. Minha consciência me reconduz ao meu interior, a solidão me reintegra ao mundo. Paradoxo, contrassenso, não me interessa, ela é meu suporte diário renovado em período noturno para a próxima manhã. E quando houver um novo amanhã, a solidão será igualmente nova. Vou até a cômoda das analogias, e empresto que ela assemelha-se com o amor: a cada dia novo, nova sensação. Então me perguntariam sobre o absurdo, pois quem não ama, como poderia conceber tal nova sensação? Responderia eu, que há dois tipos de pessoas que não amam: aqueles que precisam amar alguém, e os que desfrutam (d)a paz. Os primeiros, veem a solidão como ausência. Os outros, a sentem como presença. Jamais estarei só, querida solidão. Enquanto houver você em meu mundo, todo pensamento será apenas um conhecido, todo sentimento restará colega, e todo amor não passará de visita. Pessoas que se vão à mesma dose em que vieram. Deixarão memória na mesma proporção daquilo que de mim levaram. Nunca permanecerão por aqui. Aqui onde não há ciúme. Aqui onde não tem afeto. Onde lágrimas viram estrelas, prantos formam constelações e sorrisos transformam-se em luar. Não sofro mais a força bruta da companhia do primeiro sol, bastando não reconhecê-lo, corajosamente. Ele arde, queima, resseca vidas como faz a paixão, como tem feito o amor. Meu pensamento não é charque, nem meu coração norueguês. Estou integrado à minha própria natureza, livre para fazer da luz um livro fechado na estante, com estórias de amores, sóis e outras invenções. Toda ficção será bem guardada, na medida de sua importância, hierarquicamente disposta na altura das prateleiras de minha história. Por isso, minha situação relacional é vazia de alguém, mas repleta de solidão. Quem me olhar sozinho na rua, nem imagina o quanto eu sou feliz. Só porque eu não preciso amar alguém. Porque eu não preciso ser amado por ninguém, para que eu seja verdade. Assim, não há tensão, posse, espera, cobrança, gozo nem tormento: a emoção é de outro plano vibratório. Em cada novo amanhecer, mais descobertas de onde, como, quando e por que ela tem me conduzido. Errei e aprendi, desenvolvi e emancipei. Abandonei as teses da reciprocidade, hoje são folhas avulsas soltas dentro daquele livro no alto. Meu peito agora é de diamante, nada pode riscar. E aquele brilho que dele reluz, é nada mais do que o reflexo do olhar de minha solidão, anteparo da lua. Mas agora eu a lavrei em meu significante notarial, inspirado no que ela sempre fez para o meu futuro: ela passou a se chamar “Lumiar”... 



 'Song For Guy' - Elton John  
 cover by him 


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