quinta-feira, 20 de novembro de 2014

CONTOS sob a copa dos abajures


 O CÉU DOS CORPOS 


Um jantar. Fim de semana, amigos em festa, poucos. Ele quase não jantara, tamanha sua atenção nela, quase um estudioso científico do universo feminino aflorando sobre a mesa farta. Depois do propósito, o sofá. Os outros saíram, ocupados com outras coisas, permaneceram apenas ele e ela, lado a lado. Ela, uma mulher, digna de companhia, aquilo que ele havia desistido de crer. Assumira sua porção isolada do mundo, agora no país dos afetos. Mas aquela moça tinha algo estranho. Todos nós temos coisas estranhas, ou especiais, ou mistérios, ou não temos nada disso, pode ser somente tolices. Houve dificuldade da parte dele em reconhecer o que era, em razão daquela sua opção oriental de (não) sentir. Uma barreira sentimental, um bloqueio emocional, muro alto fortemente erguido por sua sapiência, afastando possibilidades, chances, ocasiões e quaisquer similares. Por isso, a tranquilidade, ausência de vontades, cuidados, interesses, que tornaram-no muito mais livre e leve do que pensava: o que viesse, viria ao léu das indiferenças. Ao seu lado, ela conversava com a habilidade de uma docente, a naturalidade de uma paisagem. Ele postou-se como seu aprendiz, querendo mergulhar naquele mundo como se ele fosse uma praia balneável, acessível, anuente. Ela contava histórias e porquês. Ele jogava mais perguntas sobre as almofadas. Ela não continha o olhar nele, não aguentava mantê-lo, um certo medo no errado momento. Alguns sorrisos da narrativa, que depois do quarto ele foi se aproximando lentamente de seu rosto. Ela suspirou, tremeu duas palavras, deglutiu algumas letras e continuou falando, olhando para o candelabro sobre o aparador. Duas velas iluminavam duas pessoas, mostrando que estavam próximas. Quando seus dedos tocaram-lhe a face, ela cerrou os olhos, surgindo determinada aflição e silêncio. Ele percorreu com o dorso dos dedos tocando a tez de sua pele junto aos cabelos. Levou sua respiração bem perto do ouvido, ela tratou aquilo como uma primeira vez. E era, com ele. Mordiscou-lhe o lóbulo da orelha, deixando gotas de saliva que secavam à expiração forçada, vagarosamente abrindo seus poros de nuca e pescoço, alcançando a sua corrente. Fez um traçado com a boca percorrendo uma determinada linha anatômica que ele aprendera na faculdade, e o calor afastara o nome da memória naquele instante. Enfim, seus lábios abraçaram os dela, sem pudor algum para a imediata dança das línguas que não esperaram a orquestra começar. Depois da sede, entreolharam-se com a timidez da juventude que sucumbira nos tempos. Goles de vinho, mais quietude de frases e mais beijos demorados, lânguidos, pseudo-animais. Ele rijo, ela tesa, almofadas no chão da sala, bailado das mãos. Mas não haviam conversado sobre isto antes. Um não sabia o que o outro desejava, ou permitiria, ou sequer simplesmente pensava sobre o significado do prazer. Acaloraram-se, e os gemidos dos organismos fizeram som de balas ricocheteando no corpo da amizade. Estavam matando-a, a sangue quente, rubor e Merlot. Inconsequência, quem sabe. E não precisava atribuir culpa a qualquer um dos dois, era só dolo, duplamente consensual. Ato não consumado, os outros voltaram e o encontro teve o seu fim. A filha dela desconfiou, batom disperso criou um inimigo. No mesmo palco onde uma amizade sofreu atentado, nascera uma inimizade, unilateral. Eles não queriam saber disso. Há momentos na vida em que a gente tranca a realidade do lado de fora, para depois chamá-la de volta, algo compulsório demais para suprimir impulsos. O sexo é o único destino possível ou não para as relações entre quem não soube amar seus amores do ontem, desprezados como se pó fossem e uma simples flanela resolvesse espaços. O amor não é (de) súbito, ele se constrói. Poderão ser ótimos parceiros horizontais, mantendo íntegras as solidões fractais do afeto voluntário. Despediram-se, superficialmente com um beijo formal num breve estalo emudecido ao vento tangente. Nem abraço teve. Chegou em casa e correu para o instrumento. Como é bom poder tocá-lo, mesmo quando não existe melodia...onde não há inspiração...e nem ninguém que pudesse ouvir...  

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