Se a Medicina a identificou eu não sei. Apenas sei que ela está aí, em pleno meio ambiente, desempenhando seu melindroso papel sobre o palco dos relacionamentos humanos, felizmente não de todos. Importa é que outras pessoas a percebam, a partir de suas raízes, compreendendo assim suas origens, ou para aceitá-la mais comodamente, ou principalmente rejeitá-la (friso meu).
Somos formalmente educados de uma maneira que nos leva a conceber a vida como um fenômeno homogêneo. Significa dizer que tudo parece ser uma coisa só. A unicidade do corpo humano leva a crer que o nosso mundo é o único possível, uma espécie de antropocentrismo privado, onde o planeta gira em nossa função, de mais ninguém como se fossemos realmente a única iluminada das gotas do oceano.
Por um lado, isto é uma verdade relativa, posto que cada um de nós tem responsabilidade por seus próprios atos ou omissões, é sujeito de si mesmo perante seus deveres e obrigações, também seus direitos. O que traz esta relatividade, é uma concepção da qual nem todos têm consciência: a vida em sociedade, a qual é, por essência, uma vida de relação. Mas quando uma verdade é relativa, ela deixa de ser única, por admitir novas possibilidades, em função de outros pontos de vista sobre um mesmo objeto, nem tão absoluto assim.
E este processo educacional, tão tradicional para não dizer arcaico, paradoxalmente à medida que acompanha as gerações, deixa de se atualizar ao longo delas. É uma herança maldita que recebemos num momento em que não estamos preparados para dizer não. Recepcionamos tal ensinamento, sem questioná-lo como se deve, por acharmos que deva ser o correto. Até aí, permanecemos cegos da visão crítica, passeando às escuras por um medievo castelo que não fomos nós quem construiu.
Esta linha de raciocínio, de cunho egoísta e segregador, faz querer o mundo para si da forma de lhe convém, ou rejeitar tudo ou toda forma que não lhe convier. Não importando as outras concepções, as outras formas de pensamentos, as novas possibilidades: a vida é o que se quer que ela seja. Mesmo que isso não signifique a verdade. Basta uma versão do mundo para que as coisas ao redor sejam do jeito que um indeterminado alguém queira que seja. Mais ninguém pode querer, apenas esta pessoa.
Nenhuma variante do egoísmo é dormente. Ele sai para fora, cai do mundo, se explicita como num show de boate soturna. É a exteriorização do ego na forma de vontade, revelando desejos e demonstrando poderes, cuja força dependerá de onde ela é empregada. A Física elementar, pelas reações oriundas de uma ação, mesmo que esta seja por sua vez, reacionária.
Em geral, é óbice ao movimento, ao curso natural da vida, em razão do medo diante de toda possibilidade de transformação. Pessoas portadoras desta síndrome, na mais tênue eventualidade de mudança de seu status ou do status de suas coisas, já se investem como defensor mor de sua “propriedade”. Sim, infelizmente, estes doentes consideram que os seus próximos também tem natureza jurídica de propriedade. Como se fosse possível e não desumana a subsunção de um ser humano ao exercício de sua posse por parte de outrem. A escravidão, desde então, modernizada.
O jargão popular traduz isso em uma das mais temíveis e fatais palavras da língua portuguesa, que faz adoecer um relacionamento: o ciúme. Ele é autônomo, posto que se explica, justifica atos, determina comportamentos, atenua condutas, disfarçando aos incrédulos o mal nele contido. Contraditoriamente, é um ente abstrato que denota total e irrestrita dependência do outro. Portanto, sua autonomia é falaciosa, cai por terra diante de tal contracenso. Como pode algo dependente ter vida própria? Não mesmo, é caso de sobrevida.
Na verdade, o ciúme é a mais clara manifestação de insegurança. Tolos são os que acham que ele é exemplo demonstrativo de um sentimento denominado amor. Não, não é nada disso. O amor verdadeiro, este possui outra dimensão. E cá, sobre a Terra, são poucas as pessoas que o vivenciaram. A grande maioria confunde, sentindo ciúme imaginando que isso é amor.
Por sua vez, a insegurança provém de vários fatores, a começar pela falta de confiança. Não a confiança no próximo, mas em si mesmo. A pessoa ciumenta, não consegue definir o próprio sentimento, pois duvida da reciprocidade a todo instante, não sem razão. Porque é o próprio ciúme que interfere negativamente nesta reciprocidade, fragilizando-a, inoculando o medo da perda, culminando na violência advinda do seu ilusório “poder”.
Ele dispara, atinge, fere e às vezes até mata um relacionamento. Arma branca? Não, é transparente. Algo que teve um dia a mais pura das intenções, agora se encontra no front de artilharia. Falsa alquimia que tenta transformar uma pessoa humana em objeto, não consegue. Não consegue porque a alma é intangível. Porque ninguém é capaz de tocar em nosso coração. Nem nós mesmos. Como apoderar-se então? Jamais.
Não, ciúme não é amor. Ciúme é um baixo sentimento de caráter material, com o único intuito de fazer com que o outro integre o seu acervo. Tal como se faz com os bens móveis, imóveis ou semoventes.
O amor, possui outra dimensão, muito além da material. É outro plano de vibração. Por isto, sabe-se que este “sentimento possessório” não é o amor. Aquele, tem seus sinais e sintomas, os quais em conjunto caracterizam uma síndrome. Como doença, necessita ser tratada, mas a cura nunca virá durante uma relação. É preciso estar pronto, então livre destas sensações de posse, sem riscos de recidiva, para se poder iniciar um novo relacionamento. Pois aquele que estava sendo mantido nesta base, já foi contaminado pela síndrome.
Eu não sei o que é o amor. Mas tenho convicção de que esta síndrome, não é. Longe disso, o amor deve estar num plano altivo, longínquo, mas imaginável. Não posso dizer o que ele é, mas afirmo com segurança o que ele não é. Porque o amor verdadeiro não gera ciúme. Seus sinais e sintomas são de outra natureza, relacionam-se à natureza humana. O ciúme prende-se rasteiramente à natureza animalesca e selvagem, por vezes tocando a irracionalidade, coisa de involução. O amor, é progresso, tranquila e dimensionalmente infinito.
Enquanto as relações pautarem-se no sentimento de posse, não haverá felicidade. E sim um duelo (mais interior do que externo) marcado pela subserviência, pelo apego desmedido, pela submissão e pela abdicação de vontades que só desejavam um pouco de paz individual num mundo plural e socialmente melhor. Precisa-se recortar o tempo quando se divide o mesmo espaço. Distribuição de energia, equilíbrio, serenidade e confiança. Do contrário, não será mais o afeto que mediará e sustentará as relações humanas, e sim um balaio repleto de estagnação, conveniências, interesses, conformismo e desesperança, sem espaço para o amor e a saúde que dele emana.
Ter amor, é não sentir ciúme. Ter ciúme, é não sentir amor.
“O ciúme é muitas vezes uma inquieta necessidade de tirania aplicada às coisas do amor.” - Marcel Proust
"Panis et Circenses"
- de Caetano Veloso, versão Boca Livre