A Rua do Passado
A velha guitarra
precisava de um conserto, digno. O luthier morava longe do presente, pertinho
do passado, um pouco além. Ele foi até lá. Não quis usar localizadores, foi
pelo instinto. Cortando algumas ruas do bairro Santa Quitéria, algo veio
chegando com o vento frio pela janela. Sensação estranha, única, um misto de
presença e ausência. De repente, parou na frente de uma casa: era ali. A
fachada estava reformada, obviamente. Mas não impediu que a tal sensação se
traduzisse em lágrimas. Naquele número, havia uma família. Que recebia outra
parte da família. Muita gente, naquele saudoso tempo, confraternizando entre
saborosos churrascos e sobremesas coloridas. Tempo em que as pessoas se
visitavam com naturalidade, espontaneidade, vontade, coisas raras hoje em dia,
superadas pela virtualidade das relações. A criançada correndo, brincando. Os
tios assando, as tias na conversa, o avô querendo ir embora cedo. Ele saiu
dessa onda de memória, não convinha ficar ali olhando a casa nos dias de hoje.
Os óculos escuros foram providenciais, para maquiar a reação sobre a lembrança
de tanta vida, conjunta com tantas mortes. A rua continua, vem uma próxima
esquina e mais adiante a casa do luthier. Na volta, uma volta pelo bairro das
festinhas de adolescente. O primeiro beijo na boca, ninguém esquece, tampouco a
música que tocava, “Easy”, do Lionel. Fácil ou belo como o sol da manhã? O
beijo ou a vida? Ninguém avisa o que vem pela frente, vire-se. De um passado
mais recente, uma das clínicas onde trabalhou algum tempo, talvez a melhor. Já
mudou de dono e de nome umas cinco vezes, a boa recordação era dos pacientes e
de poucos colegas. Mais adiante, naquela rua sem pedrinhas de brilhante, o
clube da infância. Os primos e amigos que ali frequentavam, as piscinas, as
canchas de futsal, os saraus de sábado. Dali, não havia saudade. Lá para cima,
o estádio do clube do coração. Modernizado, também não impediu lembrar-se dos
pães com bife sob os pinheiros de antigamente, a mudança de lado no intervalo,
era quase tudo bucólico. Agora, a imponência de metal & concreto protegendo
a modernidade através da tecnologia do conforto, um tanto inútil para o
propósito, mas tudo bem. Adiante, do lado esquerdo, na frente da igreja, a
pracinha da quadra de areia já no fim da adolescência, os amigos dali que não
mais estão. Tudo isso, em quinze ou vinte minutos de carro. Talvez meia hora ou
ainda quarenta anos. Um tempo incontável se passou naquela tarde. E a certeza
de que nada voltará. Se soubéssemos disso, talvez tivéssemos aproveitado melhor
os momentos, as companhias, a vida. As pessoas, os amigos, os parentes, as
festas e os almoços. Tudo. Mas isso não se ensina. Vamos aprendendo, à medida
que as coisas morrem. Enquanto estão vivas, parecem eternas. Parece que não
precisamos nos dedicar, visitar, olhar nos olhos, conversar. Parece que não há
amanhã. Que as noites não se interpõem entre os dias. Parece não haver tempo. Então,
nossa omissão ou nossa ação equivocada inicia o processo de separação de todas
as coisas vivas. Elas continuam, mas cada vez mais distantes. Vamos embora dali
por outras ruas, outros caminhos dentro da cidade. E não voltamos mais. O que
volta, é só a saudade como se fosse sol. Trazendo algumas lágrimas como se
fosse chuva. É a natureza, compensando a inabilidade dos humanos em fazer com
que seus valores, lhes afastem daquela coisa chamada consciência. Consciência, parece ser algo que se encontra sempre no começo das ruas... no princípio das relações... e, tardiamente, nos fins dos caminhos.
"Yesterday and Today" - YES - Piano cover by Eugene Alexeev
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