sábado, 6 de dezembro de 2014

"A VIDA SEM UM GRANDE AMOR"


 - Pseudocrônica de um solteiro por opção - 

Quântica. Uma vida não infinitamente divisível. Recorri à Física para tentar compreender o que é viver assim, sem amar ou ser amado. Não como consolo nem justificativa, apenas para saber a ciência do por que, faço jus sem curiosidade alguma, posto que sou eu. Então eu pude ‘de temps en temps’ (como diria a também aspirante ao domínio da língua francesa, a saudosa colega Sandra) dividir a minha vida até aqui, em pequenos amores, corretamente chamados de sentimentos; e não seriam para sempre, já que a essência do amor tem natureza de eternidade. Solução de continuidade foi rotina em meu tempo de afetos. Hoje, escolado, sei como é; agora, longa fase de remissão. Posso então observar meu espaço com mais propriedade. Disso, concluo coisas tão simples quanto os motivos que levam as folhas a cair das árvores. 



Começarei pelo tempo: quando é que reparamos que estamos sem um grande amor. A semana, tem períodos clássicos, horas tradicionais, momentos costumeiros em que se pode reconhecer tal fato, juntamente com suas imediatas consequências, sensações que não advém de uma causa e sim de um fato. Deixarei de fora o sábado à noite, sabedoria popular. 



Trago de início o exemplo do despertar. O som do despertador pede o abraço vazio, ninguém ao lado para a saudação do bom dia. Aquele acordar lânguido, preguiçoso, acalorado, toque horizontal dos corpos chamando a bissetriz das almas coordenadas, por vezes excitado, simplesmente inexiste.  



Verticalizar, arrumar a cama e ir para o banho. Nele, a água quente de um calor que não virá. Anunciação da neutralidade diária que se aproxima. Na pia, uma só escova de dentes, sempre renovada e resistente à ação mecânica do atrito com o cotidiano. Xampu do gênero, ausência de condicionadores, cremes e tais. Banheiro com cheiro de homem. 



A hora do desjejum. Silêncio no meio, desnecessidade de ligar a TV, mesa não posta, café Pelé em pé. Cães alegram-se na primeira e única refeição do dia. Quarto arrumado, roupa limpa, perfume, o trabalho, carro vazio, músicas placebo. Carro com sinal de homem. 



Almoço. Talvez a mais significativa. As pessoas se aglomeram em pares, trios, grupos falantes nos restaurantes, difícil para um trabalhador autônomo, itinerante e nômade por natureza, encontrar mesa para somente dois lugares, sabendo que um estará vazio. Pois quanto maior a mesa, maior o estereótipo, timidez em ação. Começa a dança dos olhos sem anteparo, nem música de palavras, ausência de colóquios, engolidas a seco pelo céu nublado da boca que não chove letras. Demonstração de força, independência, autonomia relacional. Peito aberto, sobre a mesa com jeito de homem. 



A volta para casa. À tardinha, os mesmos cães pulam ao redor do sempre vazio em meu lado. Entro na casa quieta, mudez dominante. Não há janta, lanche ou refeição qualquer. Uma vitamina quase instantânea substitui reencontros, mimos, paparicos. Violão no sofá, acompanhando visualmente o noticiário inaudível para não atrapalhar a procura das notas daquela música que veio na lembrança. O teclado como abraço, o Word feito colo. Ambiente com aparência de nada. 



Por fim, o repouso. Cama enorme, supérflua em tamanho, carente de corpos a cama, não eu. Quatro travesseiros símbolos de meus exageros, hospitalidade inútil. Meia-luz, meio-livro, vigília integral. Reflexões madrugais, notívagas de programar amanhãs de solidão voluntária. Um sono leve, sem sonhos possíveis, corta a noite cheia de estrelas conduzidas pela lua abusada de brilhar: há luz sobre minha vida, eu sei disso. Cama com cara de espaço. 



Quatro, são os momentos que não me avisam que não vivo um grande amor. Não preciso ser avisado, porque não há algo a ser feito, um caminho a seguir, um telefonema a fazer, uma mensagem qualquer, uma procura, uma ação, absolutamente nada artificioso, forçado ou intencional tem vez em minha conduta individual. Ao contrário, é justamente nessas horas em que eu me sinto mais forte, como um reflexo involuntário de contrair músculos preparando o organismo para períodos de ausência. Não há tristeza nem melancolia, há apenas o vácuo, um silêncio celeste rompido pela música dos astros, sucumbido pela força dos textos no computador. Um parêntese: entre amigos, parentes e pessoas, considero outra dimensão, não cabendo lugar para as coisas de companhia, que garanto-me sozinho, nem me passa pela cabeça olhar ou até mesmo pensar para o meu lado, explicitamente vácuo. 



E encerro esta falsa crônica, com o espaço. Não há espaço ao meu lado. Blindagem afetiva, couraça sentimental, frieza cerebral. Hormônios desenvoltos a ponto de fazer do discernimento, a virtude maior. Não há mais nada a falar de espaços. Pois todos os locais são iguais, inespecíficos, fugindo assim ao tema proposto. 



Enquanto houver corpo, que se satisfaçam suas necessidades básicas e instintivas, tão rápido quanto merecerem. Isto não impede conhecer outras pessoas, outros mundos, outros sentidos e por que não conhecer outros corpos. Aliás, ainda é fundamental viajar pelo universo humano. Sem a intenção de encontrar alguém, não preciso de combustíveis, de rotas, de suprimentos como nas viagens convencionais, não há destino. O que existe é uma coisa chamada liberdade. Seu preço pode ser caríssimo, mas o prazer de não correr os riscos que as relações afetivas trazem mascaradas no bagageiro, inevitavelmente por vezes conflitantes, é quase inenarrável. O prazer de conversar com quem eu quiser e vice-versa. Igualmente de sair, entrar, copular ou não, apenas ronronar, espreguiçar, essas coisas tipicamente felinas. O prazer também de pegar um livro, do começo ao fim. De escutar uma música sem interrupções. De assistir um filme e dormir no meio. De pegar o carro e não precisar voltar. De viajar sem ter ponto de partida. De transcender sem ter hora de chegada. É para isto que temos espíritos: para não nos prendermos nas vicissitudes dos nossos organismos. 



Uma liberdade que permite compreender, que realmente não existe aquilo que chamam de “grande amor”. O que existe, são convenções, invenções e ilusões, todos frutos da árvore da paixão, aquilo que eu repito e denomino como “sentimentos”. Por terem natureza de frutos, um dia amadurecem. Noutro, apodrecem e caem. Por ação daquele vento que faz cair as folhas das árvores, pelo mesmo ar que respiramos, ou por tentarmos respirar. O reino vegetal só pode servir de alimento para o reino animal no sentido orgânico, jamais emocional. Não fazemos fotossíntese, trabalhamos só com oxigênio, precisamos respirar bem para viver melhor. Há quem se submeta a entregar um de seus átomos de oxigênio para um/a companheiro/a. Mas isso não é necessariamente ter um grande amor: ou é daqueles frutos, ou é simplesmente amor, sem adjetivos para qualificá-lo, identificá-lo ou mesmo reanimá-lo. Este amor, á para pessoas simples, explicada sua raridade. Fui complexo demais com minhas pseudo-companhias. Só por ter desenvolvido o dom de ser Poeta. Concordo tanto com uma delas, que adotei como cântico: "tem sangue eterno a asa ritmada e amanhã estarei mudo, mais nada.". Amanhã mudo, hoje tão livre. Coitado de quem não escreve, é mudo duplamente em sua própria história... 



 "O poeta não é feliz 
 Fosse feliz não seria poeta 
 Seria apenas um entregador de flores 
 De uns para outros 
 Sem passar pelo seu jardim de ilusões.. 
 Mas não é a ilusão que alimenta o poeta 
 Ele apenas sorve a realidade do impossível." 
- Marin Chêne - 



sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Seção Moral da História


 NA CONTRAMÃO 

{Depois do amor, educado ele ia para o chuveiro, ela já devia ter se lavado. Ao entrar no banheiro, ela estava na ponta dos pés, fazendo alguma coisa no rosto em frente ao espelho. Aquele quadril desenhado a alguns compassos parecia um convite, ele jamais recusou, meteu-lhe o instrumento por trás como fazem os bandidos marinhos, ignorando as leis dos homens. Ali, e só ali, o sexo anal era mais gostoso. Entreolhavam-se indiretamente no espelho, feitos desconhecidos voyeurs, à medida que as coisas trêmulas caíam pelo chão. Olhares cerrados, o sexo proibido liberto estava, revirando instintos animalescos de prazeres alternativamente humanos ou quase. Os gemidos eram mais baixos, bem ao contrário do convencional, onde se esgoelavam liquidamente. Ela queria força, ele cuidado. Ela violência, ele exercício. Ela pedia palavras porcas, ele as entregava em seus ouvidos baconianos. Agarrava-a de um jeito muito mais forte do que fosse necessário ou cortês. Isso a levava ao delírio, salivação ao extremo, língua disparada no céu da boca, cabelos cacheados em movimento criminal, o embaçado não era da água e sim dos corpos novamente em ebulição. Os braços dele dançavam sobre seus seios, desciam mãos até a vagina, ela não se aguentava. Tremia as pernas num gozo mortal, quase desfalecendo ao chão após o tradicional sorriso. Pronto, sem emitir secreção alguma, ele gozava por dentro dele mesmo, de outra forma: seu prazer era apenas dar prazer a ela. E assim conviviam nos fins de semana, fazendo do sexo um agradável convidado para aquele lugar onde não morava o amor... }

/E pensar que existem outros que levam isto para muito além dos banheiros, dos quartos e das salas, fingindo que é sentimento, inventando amor. Por isso as pessoas precisam ter noções de engenharia, para aprender a delimitar no espaço, os alcances de cada relacionamento. Decorações, vão bem apenas em interiores. O resto, é paisagismo.../ 



quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

CURTA - cronoMETRAGEM


A MULHER DO LADO 

Onde foi parar a música, eu não sei. Dias sem som, sem ritmo nem alegria de ouvir a vida daquela forma. Não faço ideia, mas sei que não devo procurar seu paradeiro. Como em respeito ao filho que se foi por opção dele. Por outro lado, também sei que não devo aguardá-la, mas por respeito a mim mesmo. Mundo de escolhas, vivemos pressionados a ir ou permanecer, como se fôssemos reféns dos acontecimentos, das vontades, dos projetos, de alguém e por que não dos sonhos. Não se pode mais aquietar em paz, contrassenso. A questão não é apenas essa: a música levou algo com ela, muito mais profundo do que aquilo que as notas possam alcançar. Mas também não quero identificar isto. Ocorre é que falta alguma coisa além da própria música. Talvez seja a vontade de ouvi-la, mas como eu não quero saber, que fique assim. E o que fazer quando a gente descobre algo que não quis saber? Acho que é sinal de que ela não está tão longe assim. Se já achei motivos, ela deve estar bem pertinho. E o que fazer com aquilo que está bem perto de nós mas não vivenciamos? Gostamos, mas não temos. Penso que não devo ir atrás. Oh, naturalidade...me ajude. Se ela voltar, bem a receberei. Ela tem o seu lugar em mim, hoje tomado pela poesia. Necessito de equilíbrio, para não ficar totalmente só se eu brigar com minhas palavras. Não pretendo me afogar nelas, mas hoje atingem uma proporção preocupante no meu espaço. Eu sou contemporâneo, progressista, não quero me ater em fazer amor apenas com uma delas. Música, se você estiver me escutando, volte logo, pois meu carinho por você me enche de tesão e a poesia não aguenta mais minha volúpia. Meu corpo, nu nesta casa, pede por sua companhia. Não durmo direito, tenho saudade do seu embalo, seu conduzir, seu viajar e transcender. Ou você vem, ou largo a poesia. Por um pouquinho de equilíbrio, mesmo que com ambas ausentes, já que a paz de nossa relação triangular está momentaneamente inviável. De tão só, a poesia vem se encontrando com o delírio por aí: sei disso e não quero mais viver assim. Nem que eu tenha que ir embora desse lar nosso, me entregando à ausência que você escolheu. Se isso for preciso, lamentarei a seco, por conscientização. Eu, que desejo apenas o bom e habitual clímax de nós três... 



CURTA - cronoMETRAGEM


A CHEGADA 

Eu não acreditava em sonhos. Até que me vi dirigindo numa estrada deserta, rumo ao interior. Uma planície, pradaria esverdeada, vegetação densa ao nível do chão. De repente, do alto de uma colina, o veículo suspendeu no ar como um Boeing vazio em decolagem, me elevando a dezenas de metros de altura. Uma visão espetacular encobriu o susto, pois homens não voam, ao menos de dentro de suas máquinas terrestres. Mas era sonho e no sonho tudo pode, qualquer ternura, assim como beijos na boca da mulher proibida. O verde tornou-se maior, mais escuro, mais intenso, mais verde. Eu, voando sobre o chão, rota de minha vida. Não se via pessoas, animais, casas, construções, quaisquer sinais de civilização. Apenas a natureza dominante do ambiente, extensão sem fim. Eu não olhava para o céu - me sentia elemento dele - apenas para baixo. Mas eu estava subindo, já fora do carro que se desfez num instante que nem sei. Flutuei como nunca. Bem mais do que um mergulho no rio, que na vista do topo da montanha, que boiar em mar de almirante, que o rolar de dunas altas. Sensação única, quase não existencial. De tantas interpretações, somente uma é válida, assim como na vida, em relação aos fatos e sua verdade. O que extrair disso, é dúvida que nasceu junto deste meu amanhecer. Talvez sinal de que meu mundo anda mesmo deserto. Que eu preciso ascender em algum sentido. Ou então que os sentidos já não fazem mais sentido e a hora é essa, meu tempo se foi. Se morrer é assim, tão bonito para quem se vai, talvez eu deixe por aqui as lágrimas, todas. Não ficaria de bom alvitre, lá de cima molhar em vão ou atingir ninguém aqui embaixo. Apesar de que os prantos só fazem sentido se ocorridos em reservado. Mas isso é por aqui, na Terra. Eu, no sonho, já não estava mais aqui. Uma outra dimensão foi anunciada, onde tudo é muito diferente, prevalência de tantos contrários. Lágrimas? Lá, já percebi que seria muito banal chovê-las apenas sobre árvores tão bonitas... 




CONTOS do aquém-mar


 A ÚLTIMA VIAGEM 

Pronto, finalmente cheguei ao fundo. Sem cordas nem lanternas, apetrechos de escaladas. Vim tropeçando nas manhãs, escorregando pelas tardes, caindo nas noites, usando o tempo como apoio, chão. Não alcancei espaços nesta intentada, não houve onde eu quisesse e que só por isso pudesse chegar. Aqui é ermo, prevalece a escuridão, sem flora nem fauna a olho nu. Mundo subterrâneo, similar morada em caverna, horizontalizada como as grutas labirínticas do Nepal. Caminho por dentro, as coisas mantém certa distância entre si, nada é perto. Há alguns móveis na penumbra, vejo em silhuetas lilases de vapor. Achei uma estante, onde apanho um livro que abro e dele sai uma réstia de luz em direção ao meu rosto de pós. Cansado, sentei-me na cadeira ao lado. O livro contava dois anos de histórias na Armada, belas fotos, tempo feliz que não sabia, queria mais. Já conhecia aquela obra. Troquei, peguei um mais antigo, sobre o tempo em que eu tinha dezessete anos de sonhos possíveis. Outro, falava da clássica noite de natal onde eu questionei estrelas num céu enluarado de vestir minhas até então sete primaveras. Meu passado, ali todo guardado, sustentado por prateleiras de imbuia protegido com portinholas de vidro jateado. Deixei histórias, andei um pouco mais. Na parede, um pôster dos meus pais. Num aparador, porta-retratos dos meus avós. Em cima de uma mesa, espalhadas fotos de alguns amigos. Os locais de trabalho, todos minuciosamente descritos numa pasta ao lado de um álbum dos meus cães, ambos sobre a cômoda. Havia também um cofre, onde estavam representadas minhas filhas. Não vivi pouco. Sobrevivi demais, eu concluiria. Foi bom relembrar, mas tenho de ir adiante. Um pátio enorme, povoado de figuras de colegas de convivência. Salas confortáveis, imagens agora dos melhores amigos dispostos ao longo dos sofás. No auditório, outros poucos parentes, junto com os apenas conhecidos. Alguns quartos, vazios, talvez tenham habitado meus amores. Próximo, um lago repleto escondia meus sentimentos por mulheres que não vingaram. Continuo. No meio do trajeto, um quadro onde se lê algumas virtudes particulares. Ando um pouco mais, agora na direção de um ruído. Encontro alguém murmurando escondido em posição de lótus sob um lençol vermelho e preto. Sem medo algum, ergo o véu e vejo que sou eu mesmo; então me pergunto o que faço ali. Essa parte de mim diz que é o que eu ainda não fui, e preciso urgentemente libertar-me para ser. Não posso mais aguardar coisas externas, necessito tomar atitude como missão. Peço-me desculpas, dizendo que providenciarei assim que possível. Respirei fundo, olhei tudo em volta como quem vai se mudar para sempre de um determinado lugar familiar, habitual, costumeiro, confortável mas sobretudo conservador. Na volta, sentada numa poltrona, avistei ela, símbolo de todos os meus desamores. Cheguei e parei em sua frente. Não me olhou nos olhos, virou o rosto e emudeceu. Não me demorei, já sabia. Parti, ela não olhou para trás. Um desamor que eu deixei, ainda está por aqui. Eu poderia voltar e avisar para ela entrar num quarto, mas não seguiria meu conselho. Pois de um quarto, ela alcançaria facilmente algum riacho em galeria que a conduzisse para o passado de esquecimentos. As lembranças, permitidas, estão todas aqui. Mas ela não quis ficar. Não podemos nos permitir ter saudade de quem se negou veementemente a fazer parte de nossa história. Hesitei em estender-lhe a mão e orientá-la para o lugar certo. Não o fiz. Peguei papel e caneta, meus instrumentos diários incapazes de tocar seu coração naqueles meses, e deixei uma anotação. Escrevi que, quando eu morrer, que dela não escape uma só lágrima. Porque as lágrimas são compatíveis somente com o que foi (con)vivido. Aquilo que não aconteceu, merece então dois sorrisos. Um pelo respeito por ter gostado verdadeira e orgulhosamente dela. Outro, como um aceno do trem em movimento, para mim ciente em terra de jamais. O desamor liberta, a morte emancipará. Mas isso só ocorrerá depois que eu voltar de onde estive, de dentro de mim mesmo. Ela, em breve, não estará mais ali. Mas quem é ela, já não reconheço mais. Termino de atravessar a tal “fronteira mais escura”, revendo e analisando a vida que ficou em mim. Não couberam neste espaço os meus erros, omissões, desambições, hesitações, frustrações e coisas do gênero, por estarem todos trancafiados em tonéis de carvalho, localizados bem longe num ponto não equidistante entre o passado e o nada, mais perto deste. Não bebo vinho, não fiz do tanino o meu néctar. Trabalho apenas com essências, percepções sensoriais aromáticas, de características voláteis, consistência gasosa, natureza fluídica. Assim foi o meu amor. Conferi o cadeado, tirei o pó e vim embora. Passei a ser como a Lua. Agora, é rumo ao imaginável, ou seja, é somente o lado não escuro que me interessa... 


  pensando:  
 "Acho que eu vim por outra saída: estou escutando o mar!" 


terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Congresso das Poesias Vivas - "A Solidão" segundo eles




A solidão era fera indomada no passado 
Hoje é cria mansa no presente 
E nada será amanhã diferente disso 
Por não haver futuro, ou seja: 
Por causa da eternidade do presente.. 
- Marin Chêne 

Sou companheiro da solidão 
Jamais viverei só 
Enquanto ela for retórica através das minhas mãos... 
- Henry Dernier 

A solidão é a sorte de todos os espíritos excepcionais. 

Quem não souber povoar a sua solidão, também não conseguirá isolar-se entre a gente. 

É a solidão que inspira os poetas, cria os artistas e anima o gênio. 

Quem ouve música, sente a sua solidão 
De repente povoada. 

O amor começa quando uma pessoa se sente só e termina quando uma pessoa deseja estar só. 

Minha solidão não tem nada a ver com a presença ou ausência de pessoas…Detesto quem me rouba a solidão, sem em troca me oferecer verdadeiramente companhia. 

Como se comporta a Sua Solidão? Minha solidão? Há uma solidão que é minha, diferente das solidões dos outros? A solidão se comporta? Se a minha solidão se comporta, ela não é apenas uma realidade bruta e morta. Ela tem vida. 
- Bachelard 

Cada um fugirá, suportará ou amará a solidão na proporção exacta do valor de sua personalidade. Pois, na solidão, o indivíduo mesquinho sente toda a sua mesquinhez, o grande espírito, toda a sua grandeza; numa palavra: cada um sente o que é. 
- Arthur Schopenhauer 

No fundo, é isso a solidão: envolvermo-nos no casulo de nossa alma, fazermo-nos crisálida e aguardarmos a metamorfose, porque ela acaba sempre por chegar. 
- August Strindberg 

As obras de arte são de uma solidão infinita. 
- Rainer Maria Rilke 

O segredo de uma velhice agradável consiste apenas na assinatura de um honroso pacto com a solidão. 

Sempre me senti isolado nessas reuniões sociais: o excesso de gente impede de ver as pessoas... 

Há certo gosto em pensar sozinho. É ato individual, como nascer e morrer. 

Que minha solidão me sirva de companhia. Que eu tenha a coragem de me enfrentar. Que eu saiba ficar com o nada e mesmo assim me sentir como se estivesse plena de tudo. 

Sofra a dor real da solidão porque a solidão dói. Dói uma dor da qual pode nascer a beleza. Mas não sofra a dor da comparação. Ela não é verdadeira. 

A solidão só me dá prazer na medida em que sei que ela é uma escolha. Solidão só dói quando é inevitável. / 
A solidão não precisa ser aniquilada, ela só precisa de um sentido. Eu não saberia dizer que outra coisa mais benéfica há para isso do que livros. Uma biblioteca com mil volumes é um exército que não combate a solidão, mas a ela se alia. / 
Nossa solidão é nossa casa e necessita abrir horários de visita, hospedar, convidar para o almoço, cozinhar com afeto, revelar-se uma solidão anfitriã, que gosta de ouvir as histórias das solidões dos outros, já que todos possuem seus descampados. / 
A solidão não precisa se valer apenas do monólogo. Pode aprender a dialogar e deve exercitar isso também através da arte. Há sempre uma conversa silenciosa entre o ator no palco e o sujeito no escuro da plateia, entre o pintor em seu ateliê e o visitante do museu, entre o escritor e o seu leitor desconhecido. Ah, os livros, de novo. De todos os que preenchem nossa solidão, são os livros os mais anárquicos, os mais instigantes. Leia, e seu silêncio ganhará voz. / 
Permita que sua solidão seja bem aproveitada, que ela não seja inútil. Não a cultive como uma doença, e sim como uma circunstância. Em vez de tentar expulsá-la, habite-a com espiritualidade, estética, memória, inspiração, percepções. Não será menos solidão, apenas uma solidão mais povoada. /
Ah, os livros, outra vez. / 

Dá-me tua taça de solidão, mulher 
Que este homem te oferece um brinde de companhia 
Para depois voltarmos à serenidade de nossos estios.. 
- Eduardo Carval 


FORMATO in FINITO




Uma estranha sensação chega para ficar. Então ela se transforma em algo diferente, diferente da natureza passageira das sensações. Eu ainda não bem sei o que é, como se chama, mas posso tentar arriscar o seu significado. Chegou pela certeza de que nunca mais vou amar alguém. Havia uma determinada anunciação, revelada ao longo do tempo, e meu aprendizado só reconheceu agora, depois da consciência, o tal amadurecimento. Ela mostrou-se na semelhança entre os meus amores últimos, talvez todos. Todos em calmaria, em silêncio, sem melodia, sem compasso. Barcos navegando ao ritmo das correntezas, sem interferência humana para dar-lhes rumo norte ou até mesmo um sensato retorno ao cais. Alto mar, alta indiferença, baixa expectativa, nula perspectiva. Interessante coincidência, a qual parece num primeiro momento estar ligada em uma causa minha. Antes mesmo do segundo instante, isso se desfaz quando eu olho para trás e vejo meus movimentos, sempre na direção do sol, guiado pelas estrelas. Portanto, ninguém poderia dizer que eu não tentei navegar. Mas elas, elas foram renitentes. Vieram junto, outras não, mas todas praticamente ausentes de palavras. Decerto porque eu tinha muitas, frases, então uma carga excessiva poderia ter-nos naufragado. Mas não foi este o motivo dos afundamentos. Foi a minha inquieta alma que não admitia uma solidão a dois. Um coração, que por vezes acabou rompendo as celas da razão para alcançar a vida lá fora, um pouco de luz e água para o espírito trancafiado pelo relacionamento atravessado em bemol. Descoberto este ponto em comum que estabeleceu esta sina, é hora de interpretar o novo: não haverá outro amor. Um pedaço de mim, amputado sem regeneração, me impede de desenvolver um segundo suspiro, quando frente a uma mulher interessante. Concluo isto, mas também que ela pode ser interessante para os outros, não mais para mim. Já não foi uma vez que isto aconteceu, são as tais chances que a ignorância popular fala aos quatro ventos da história. Então essa coisa nova que há em mim, está com jeito de ser. Trouxe-me altivez, racionalidade, ciência e frieza necessária para cada enfrentamento. Digo assim, pois a sociedade cobra elos, paralelamente rejeitando argolas ímpares. E neste cardinal solitário eu vou me conhecendo, até o que eu não esperava de mim mesmo. É muito bom viver assim. Hoje eu corro livre pelos meus campos, apreciando a minha natureza, cuja paisagem é soberana de letras. Eu as encontro, como quem colhe flores, como quem mergulha nas águas ou transpõe uma montanha. Como quem saboreia uma fruta suculenta. É certo que os meus dias outonais não são tão límpidos, mas as minhas madrugadas são ensolaradas feito primavera. E a cada encontro meu, descubro nova informação, que por sua vez traduz este novo sentimento, deixando-me mais perto da verdade. Quando afasta-se todo risco de amor, aproxima-se de uma espécie de fim. Quem sabe é ou já foi o fim das ilusões, dos desapontamentos, das frustrações e das (in)diferenças. Neste começo de alegria, humor, tranquilidade e paz. Um outro mundo, uma outra concepção de beleza, uma vida já além das perspectivas. Um tempo de sons, gestos, sabores, aromas, tatos, uma vida com sentidos. Não preciso me preocupar em arranjar um nome para isso. Basta que eu continue sorvendo essa tal liberdade. Quem sabe seja ela, a rima daquilo que eu ainda não consigo denominar...


 "Novo Tempo"  /  Ivan Lins 


segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

CONTOS sem outra graça


 O CARROSSEL & A CARNE 


Você cantou, rara afinação, encostou nas oitavas com categoria. Você dançou, com discrição, encostou com maestria em todos os olhares. Você furtou a atenção, pois sem violência foi. Você bebeu, sorriu e conduziu. Fez neste sábado da música o veículo que ela pretende ser, transportando vozes para fora dos corpos chateados do descompasso cotidiano. É, ontem você foi o centro dos ecléticos pensamentos circulantes, ciranda em torno de sua fogueira ambiental. O primeiro, a olhava com proibição, impossibilidade tanta que nem imaginar conseguia, fantasia já rasgada no ateliê descolorido. O segundo, tinha a ficção da juventude, em experimentar uma mulher mais velha, tentando aprender o que ele não conseguia ensinar às suas contemporâneas, só fazendo babar dentro do próprio copo a saliva sem destino. E o terceiro, bem no fundo pensava em quebrar o protocolo do parentesco, e fazer de você a namoradinha que ele nunca teve, tão diferente daquela que ele escolhera assumidamente por conveniências e autoengano. Já o quarto, jogava sobre a mesa traços da vergonha de repetir o que acontecera entre vocês no passado de impulsos. Havia um último, que por efeito da droga decidiu aumentar a dose para não correr o risco de lhe querer, de tão verdadeiro o mundo real para ser enfrentado são, livre dela. Os outros, eles apenas cruzavam por ali, observavam por um instante e se continuavam como quem passa no bar, na vitrine ou numa prateleira qualquer. Delas, tinha uma que beirava a inveja, não física, mas sim da sua espontaneidade que ela jamais teria, nem se emprestada. Outra, juntou-se a você para compartilhar da sua alegria inimiga, obedecendo ditos populares. Você levantou e festejou uma liberdade contida por motivo particular, desses que a gente não conta nem para nós mesmos, evitando reflexões. Você passeou e se divertiu na música que saiu da minha voz abraçada com meu violão, outro violão e outras vozes também. Mas seus olhos não me disseram nada que eu quisesse saborear, não toquei na sua vontade, não trocamos cheiros. A ausência de sentidos invadiu o lugar do aniversário, limitando todas as coisas ao único propósito do entretenimento. Suas belas coxas não convidavam para outra festa, elas apenas apareceram feito automóveis no meio da noite geral. E nem quando você descruzou as suas nada inocentes pernas, abrindo-as em movimento olímpico, sua calcinha anil me pareceu como fonte. Porque depois de todos e das horas, eu concluí que não lhe olhava. Que eu nada procuro e que de nada adiantaria aquilo que vem, tudo passa e hoje mesmo se vai. Disseram-me que você gosta, e da sua boca ouvi de longe que não quer compromissos. Talvez não haja mais espaço em meu tempo para essas coisas de algumas horas em lugar privado, ao menos por enquanto. Nossa linguagem seria apenas corporal, silenciosa por calar, líquida e liquidada ao fim do último orgasmo teu ou nosso. E a grande questão é aquilo que viria depois: a obrigação de nos limparmos e irmos embora, cada qual de volta para a sua solidão semanal. Viver um presente descartável, apenas para satisfazer corpos e seus instintos básicos, algo selvagem demais para que eu quisesse contar a alguém, mesmo à título de aventura. Por isso e por todas as coisas suas, somando as coisas da vida e da morte de outras coisas, nada aconteceu. Lembrei-a antes de dormir, lavei-me do exercício e fui para a cama vazia, onde você não poderia estar. Se tivesse ocorrido, provavelmente eu teria de me esforçar muito para tentar e não conseguir extrair de você com naturalidade um outro tipo de êxtase, o da companhia. Caminhos cruzados, desta vez por uma mulher bela que não me motivou a querer conhecer suas palavras. Quem gostou muito de alguém recentemente, ainda levará um bom tempo para afastar a falta de afeto no próximo em questão, e encarar as relações sexuais como necessidade fisiológica passageira de organismos singulares de conviver, outra dimensão distante do desejo. O alcance da cantoria era muito maior do que a proximidade de seu ventre. O onanismo é um bom método para se resolver em tons de placebo, aquilo que não foi de quem se foi, para tão longe quanto já se deveria estar. Pois carinho, carinho é só para quem fica...