terça-feira, 30 de setembro de 2014

AUTORALLIA << Elegia 388 / por Brasil d'Algarve




ELEGIA 388 
A grande cidade se perde em seu próprio território. Feito um aflito ser humano, desencontrando-se dentro de si mesmo. Perde o virente de suas árvores, ceifadas sem replantio, com alegação de morte vegetal e segurança pública. Perde a abóbora dos raios de sol em razão do crescimento vertical com justificativas de habitação e segurança privada. Perde o anil do céu também por isso e pelo centrotropismo da bolhosa especulação imobiliária. Perde suas nascentes canalizando córregos em extinção sob invasões demográficas periféricas. Dos rios, nem é preciso mais chorar. Perde tantas cores para o cinza, o preto, o branco e o incolor da neutralidade do progresso. Depois das cores, vão-se seus valores, seus atores, seus amores, sem se importar com as causas que matam livres e impunemente a cada instante. É o habitat, morrendo loteamentos, cada vez mais invaginado-se nas contemporâneas casamatas. Ela, a cidade, dissipa seus encontros, descansando pés e pernas de descobrir, emancipar e libertar sobre os leitos e nos lares que foram penetrados sem 'capinha' nem KY por computadores em nome da modernidade ignorada e 'ignorantemente' tardia. Aborta as suas vozes, cujas palavras passaram a ser murmuradas através das digitais das falanges orgulhosamente virtualizadas. A cidade abandona pessoas, ganha perfis. Sua juventude, ontem transviada hoje paradoxalmente alienada de tudo que seja construtivo, humano, real. Afasta os animais silvestres, conservando alguns domésticos, atraindo a depressão como bandeira diagnóstica de todos os seus males e revezes. Perde amizades, ganha sexo. Perde colegas, ganha inimigos. Perde seus poetas, ganha mais solidão. Já não há mais frutas doces, pastéis saborosos ou pães naturais. Já não há mais passeios, companhia, intersubjetividade. É mesmo um engenhoso processo de compensar tantas perdas externas com placebos interiores de insuflação artificiosa. O que ela ganha, a cidade grande? Dunas de concreto decoradas por paisagistas urbanos, os artesãos da artificialidade. Nuvens de plástico desenhadas por débeis sonhadores, os notívagos de plantão permanente. Sóis de neon projetados por mercadores que fazem da noite a tentativa de acontecer o dia que ficou pra trás do nunca. Chuva ácida para combinar com o traje urbanoide para a festa onde o MEDO convidou o SE, mas quem entrou no lugar dele foi o NÃO. Preservativos, roupas, guarda-chuvas e óculos escuros não conseguem disfarçar a fragilidade das almas inquietas de hesitação existencial. Uma cidade boa, para habitantes medianos de realizações, que não conseguem convidar o próximo para um passeio no parque, de tão burlados estão os ótimos costumes. Vale mais uma mensagem, algumas palavras e até uma imagem lançada na Rede que de social só mantém íntegros os himens das relações não tentadas. Uma tribuna livre para seres aprisionados de viver. O debate presencial, essência do convívio e da dialogicidade, sucumbiu às postagens, numa guerra geladíssima de páginas sem capa nem índice, mas lotada de epílogos, tamanha a deseducação compartilhada. Os personagens desse cordel de horrores (dignos de um Diabo Verde simbólico hoje utilizado com prazer) são os mesmos que se sentem incomodados com a ascensão social dos menos favorecidos: do milhopan ao provolone; da cesta básica às filas nos supermercados; da tv tubo às salas de cinema nos shoppings; do busão de linha aos carros "populares" no trânsito; do interestadual aos voos domésticos, e por aí vai. Sentenças, diagnósticos, rotulações, estereótipos e maniqueísmo desvelado desfilam o status quo dos autointitulados neo-navegadores mas com jeitão de somalis, receosos de mudanças em sua posição na pirâmide social, tudo como se um clique fosse o toque de Midas no mamilo da verdade. Despolitizados, ou insuficientemente assim, ofendem o próximo sem argumentação alguma, levados pela onda da ironia, do deboche e da impossibilidade da tréplica, pois a réplica morre no hall de entrada. Discípulos de Rafinha Bastos e Danilo Gentili, os dois maiores expoentes da escória da (des)comunicação social da terra do 'tacalepaubrasil' (ao estilo de Lenio Streck). Isso tudo acontecendo e eu aqui na sala, vendo aumentar a população de pombos, os iludidos pássaros que aduzem felicidade ao voar sobre os próprios excrementos deixadas pelo caminho. Lixo inorgânico, decadência moral, subversão ética, desprezo de valores, fazem a práxis de um lugar onde deus não ousa assumir paternidade, diante de tantos imediatistas que se irresponsabilizam do próprio autocuidado, cuspindo na cara da alteridade, os quais livram-se das perspectivas por dias melhores e só querem saber do presente, descontextualizado por excelência. Um presente que pode vir de qualquer um do rol das centenas de dezenas de indivíduos cadastrados nas telas, natureza de obsolescência, descartável, vilipendiando verdadeiros sentimentos falecidos de tanto gostar, querer, criar, inovações & possibilidades para a vida lá fora. "Adiciona mais um aí? Preciso chegar logo aos quatrocentos...". Entram quarenta para cada um que sai, saldo ilusoriamente positivo. Da população que não está mais na cidade, ela se encontra toda aqui mesmo, na superfície dos mouses e touchpads. O panótico, agora é domiciliar. E a palavra cidadania será mudada para algum novo termo cibernético qualquer. Palhaços somos nós, ínfimo percentual de gentes estranhas a este local, os incomodados e revolucionários eloquentes, relutantes em mudar de zona eleitoral quando os 'naturalmente' padronizados nos sugerem o êxodo, pois mesmo em meio a tanta indignação, ainda assim acreditamos que o ser humano é capacitadamente muito mais do que pode convir-lhe ou sossegar-lhe. Mas por mera teimosia, nada mais do que isso e sem querer chamar de esperança, só fazemos perder tempo esquecendo que o litoral é logo ali...
E o pior é que quando acabar, o maluco sou eu! 

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