ELEGIA 388
A grande cidade se perde em seu
próprio território. Feito um aflito ser humano, desencontrando-se dentro de si
mesmo. Perde o virente de suas árvores, ceifadas sem replantio, com alegação de
morte vegetal e segurança pública. Perde
a abóbora dos raios de sol em razão do crescimento vertical com
justificativas de habitação e segurança privada. Perde o anil do céu também por
isso e pelo centrotropismo da bolhosa especulação imobiliária. Perde suas nascentes canalizando córregos em extinção sob invasões
demográficas periféricas. Dos rios, nem é preciso mais chorar. Perde tantas
cores para o cinza, o preto, o branco e o incolor da neutralidade do progresso.
Depois das cores, vão-se seus valores, seus atores, seus amores, sem se
importar com as causas que matam livres e impunemente a cada instante. É o habitat, morrendo loteamentos, cada vez mais invaginado-se nas contemporâneas casamatas. Ela, a cidade, dissipa seus encontros,
descansando pés e pernas de descobrir, emancipar e libertar sobre os leitos e nos lares que foram penetrados sem 'capinha' nem KY por computadores em nome da modernidade ignorada e 'ignorantemente' tardia. Aborta
as suas vozes, cujas palavras passaram a ser murmuradas através das digitais
das falanges orgulhosamente virtualizadas. A cidade abandona pessoas, ganha perfis. Sua
juventude, ontem transviada hoje paradoxalmente alienada de tudo que seja
construtivo, humano, real. Afasta os animais silvestres, conservando alguns domésticos,
atraindo a depressão como bandeira diagnóstica de todos os seus males e
revezes. Perde amizades, ganha sexo. Perde colegas, ganha inimigos. Perde seus
poetas, ganha mais solidão. Já não há mais frutas doces, pastéis saborosos
ou pães naturais. Já não há mais passeios, companhia, intersubjetividade. É mesmo um engenhoso processo de compensar tantas perdas externas com placebos interiores de insuflação artificiosa. O que
ela ganha, a cidade grande? Dunas de concreto decoradas por paisagistas urbanos, os artesãos da
artificialidade. Nuvens de plástico desenhadas por débeis sonhadores, os
notívagos de plantão permanente. Sóis de neon projetados por mercadores que
fazem da noite a tentativa de acontecer o dia que ficou pra trás do nunca. Chuva
ácida para combinar com o traje urbanoide para a festa onde o MEDO convidou o
SE, mas quem entrou no lugar dele foi o NÃO. Preservativos, roupas, guarda-chuvas
e óculos escuros não conseguem disfarçar a fragilidade das almas inquietas de
hesitação existencial. Uma cidade boa, para habitantes medianos de realizações, que não
conseguem convidar o próximo para um passeio no parque, de tão burlados estão
os ótimos costumes. Vale mais uma mensagem, algumas palavras e até uma imagem
lançada na Rede que de social só mantém íntegros os himens das relações não
tentadas. Uma tribuna livre para seres aprisionados de viver. O debate presencial, essência do convívio e da dialogicidade, sucumbiu às postagens, numa guerra geladíssima de páginas sem capa nem índice, mas lotada de epílogos, tamanha a deseducação compartilhada. Os personagens desse cordel de horrores (dignos de um Diabo Verde simbólico hoje utilizado com prazer) são os mesmos que se sentem incomodados com a ascensão social dos menos favorecidos: do milhopan ao provolone; da cesta básica às filas nos supermercados; da tv tubo às salas de cinema nos shoppings; do busão de linha aos carros "populares" no trânsito; do interestadual aos voos domésticos, e por aí vai. Sentenças, diagnósticos, rotulações, estereótipos e maniqueísmo desvelado desfilam o status quo dos autointitulados neo-navegadores mas com jeitão de somalis, receosos de mudanças em sua posição na pirâmide social, tudo como se um clique fosse o toque de Midas no mamilo da verdade. Despolitizados, ou insuficientemente assim, ofendem o próximo sem argumentação alguma, levados pela onda da ironia, do deboche e da impossibilidade da tréplica, pois a réplica morre no hall de entrada. Discípulos de Rafinha Bastos e Danilo Gentili, os dois maiores expoentes da escória da (des)comunicação social da terra do 'tacalepaubrasil' (ao estilo de Lenio Streck). Isso tudo acontecendo e eu aqui na sala, vendo aumentar a população
de pombos, os iludidos pássaros que aduzem felicidade ao voar sobre os próprios excrementos deixadas pelo caminho. Lixo inorgânico, decadência moral, subversão ética, desprezo
de valores, fazem a práxis de um lugar onde deus não ousa assumir paternidade,
diante de tantos imediatistas que se irresponsabilizam do próprio autocuidado, cuspindo na cara da alteridade, os quais livram-se das perspectivas por dias melhores e só querem saber do presente, descontextualizado por excelência. Um presente
que pode vir de qualquer um do rol das centenas de dezenas de indivíduos cadastrados
nas telas, natureza de obsolescência, descartável, vilipendiando verdadeiros sentimentos falecidos
de tanto gostar, querer, criar, inovações & possibilidades para a vida lá fora. "Adiciona mais um aí? Preciso chegar logo aos quatrocentos...". Entram quarenta para cada um que sai, saldo ilusoriamente positivo. Da população que não está mais na cidade, ela se encontra toda aqui mesmo, na superfície dos mouses e touchpads. O panótico, agora é domiciliar. E a palavra cidadania será mudada para algum novo termo cibernético qualquer. Palhaços
somos nós, ínfimo percentual de gentes estranhas a este local, os incomodados e
revolucionários eloquentes, relutantes em mudar de zona eleitoral quando os 'naturalmente' padronizados nos sugerem o êxodo, pois mesmo em meio a tanta indignação, ainda assim acreditamos que o ser humano é capacitadamente muito mais do que pode convir-lhe ou sossegar-lhe. Mas por mera teimosia, nada mais do que isso e sem querer chamar de esperança, só fazemos perder tempo esquecendo que o litoral é logo
ali...
E o pior é que quando acabar, o maluco sou eu!
E o pior é que quando acabar, o maluco sou eu!