segunda-feira, 17 de julho de 2017

Crônica Cotidiana 49




Os homens da família dele morreram. A maioria deles morreu; os restantes, são como se assim fosse. Ou omissos, ou mataram ele. Então as mulheres tomaram conta. E elas não podem ver um parente sozinho. Então, inventam coisas artificiais, para acasalar o ermitão urbano. “Vamos sair com as amigas”... “Vamos num aniversário”... “Você precisa ir ao cinema”... “Você tem que melhorar esse cabelo”. De tanta repetição, ficou com a última. Marcaram, lá na casa delas, o tal “tapa no visu”, como dizem os ‘contemporaneizinhos’. Ela, a cabeleireira, era uns cinco anos mais velha que ele. Olhos azuis, de enfeitiçar poetas amadores. Magra. Nariz aquilino, tinha prótese total superior. Mãos delicadas, mas não a ponto de enfeitiçar um especialista em cafunés. Só os dois, no banheiro. Ela pediu que ele ficasse sem camisa, ele nem ligava mais, mesmo acima do peso. Trocaram breves histórias, até lembraram que trabalharam vizinhos há algumas décadas. Ele disse que, do andar de baixo, lembrava-se de uma loira. Ela respondeu “era eu”. Ele não contou a outra lembrança, que ele não sabia recordar direito, a de que tinha algo de perverso naquela polaca tricenária. “Você ficava fumando na escada”, perguntou ele. Ela respondeu que é fumante até hoje, mas que não o fazia na escada, apenas lá nos fundos do salão. Noventa por cento de rejeição, àquela altura: fumo e dentadura. Não é questão de preconceito, mas pergunte a um arquiteto, se ele moraria numa construção sobre um aterro, ou se uma criminalista investiria em algum tipo de relação não profissional com seu cliente autor de latrocínio: haja Estocolmo. E haja analogia barata para tentar explicar coisas que a gente não conseguirá, jamais. No meio do serviço, ele disse a ela que faria, em breve, um transplante capilar. “Olha, vou te dizer como mulher e não como profissional: você é um homem bonito”. Na lata, ele disse que já tinha sido, hoje não mais. Cada um sabe se é bonito ou não. Cada um tem seus referenciais próprios de beleza. Mas fica muito feio – antiético até – tecer um tipo de comentário desses, diante da realidade. Teria Dona Jassa falado isso para conquistar o cliente Roque? Ou ela desejava apenas um sexo selvagem e descompromissado? Quem sabe ele estivesse somente cumprindo alguma cordialidade, etiqueta ou algo que o valha, diriam os mais ingênuos. Nada. Os dois estão numa selva. Existem gritos de acasalamento que soam baixinho. Mas, na selva, também tem floresta, onde há bichos que não admitem ser confundidos com presas. Será que está tão fácil assim? Basta um elogio para acabar em lençóis de cetim? Qual é o preço de um cruzamento animal? Sessenta reais? E isso resolve tudo? Serve também de catapulta para o amor? Essas perguntas são como chuva tropical. Não precisa questionar, a razão é sempre a mesma. Pessoas perdidas na selva, na cidade, nas redes sociais, todas em busca de alguém para amar ou para copular. Desespero. Competição, tiroteio, devaneio. Ele sentiu-se como um objeto. Homem objeto (podem rir, mulheres). Por ter submetido sua cabeça às mãos da caçadora, ela achou que o resto do corpo vinha junto, a um simples toque de sedução oral (achava). Aquilo não pareceu insulto, já que não foi a primeira vez, mas sim um lamento por parte dele, mais um. Deixou-a em casa, despediram-se com um até logo. Ela lhe enviou solicitação de amizade na rede, naquela noite. Ele aceitou, na manhã seguinte. Não tardou, chegaram fotos e figurinhas e gifs e o escambau na caixa de mensagens dele. Inteligente, bastou entrar na página dela, para ver o perfil de Dona Jassa. De imediato, ela havia compartilhado uma postagem de um bando de preconceituosos vibrando pela condenação em primeira instância de um político sem prova alguma: a rejeição instantânea, partiu potencialmente em direção ao infinito. Exclusão. Roque ficou (novamente) com a sensação de como se sente uma mulher ao ser molestada por um animal, claro que guardando as devidas proporções. É chato, é triste se falando em termos de coletividade. Gente assim tentando se misturar com outros que não os seus, diferença cívica gritante. Houve quem disse a ele “Mas por que você pelo menos não comeu ela?” Porque ele não é predador. Mora numa floresta. Quem faz de sua morada cotidiana um ambiente para relações bióticas, tem um quê considerável de animalesco: satisfação de instinto, mais nada. A evolução passa longe dali. Ele não soube, mas Jassa só queria rosetar, ou meter até morrer. Como aquelas pessoas que, depois do orgasmo, ou dormem de pronto ou vão correndo ao banheiro. Dormir para fingir felicidade ou banho para limpar a própria sujeira. Sexo sem sentido, é a banalização da ética. Um dia, ele viu algo parecido, escrito em algum lugar do passado. Um dia, de tanta floresta e menos selva, se chegará ao mar... 



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