terça-feira, 27 de setembro de 2016

Crônica Cotidiana 42



Cartão-Resposta. 

O concurso público. Um mosaico de gentes. Cariótipos mil a campus aberto. Tem até os privatistas, aqueles fãs do estado mínimo, atrás da carteirinha do funcionalismo total. Um fixo, é o que todos pensam como mínima garantia de alegria; a felicidade está tão longe, o cargo a um palmo do cartão. E as pessoas (porções de buracos-negros) vão entrando nas salas, como se fossem planetas em algum sistema solar. A cada candidato chegado, um mundo tão diferente quanto o físico. De comum, apenas as fisionomias carregadas, uma tensão contida, naquela batalha pela profissional sobrevida. E olhe que o salário não era muito, não. Mas sugeria-se que estava lá, todo fim de mês. Tantas realidades querendo outra verdade. Lá fora, corpos se desesperavam por entre os carros estacionados para não perder a hora, algumas cabeças não entraram após o grito final. Coitada da moça obesa, parou no meio do caminho: sentou-se no chão e pôs-se a chorar, maldito ônibus atrasado, haveria de continuar em seu subemprego, não foi dessa vez a tentativa de mudança. Dentro do bloco, envergonhados cabisbaixos escutam seus nomes & sobrenomes a receber a prova. Uma moça pediu algum comprimido para dor de cabeça, nervosa que estava. No papel, perguntas eliminatórias que não mediam conhecimento algum. Parecia que estavam ali por obrigação, jamais para classificar aquelas gentes. Debruçados sobre elas, os concorrentes fugiam do tema e pensavam o que estavam fazendo ali naquela praia, aquele instante. A coisa é mesmo um círculo. Fora algumas exceções – ‘meritosas’ ou hereditárias – a prosperidade passou longe da assunção dos ideais conquistados, mesmo que em parte. Não tem para todo mundo. Algo faltará em sua vida, não importa a natureza. Então cumpre-se a direção da circunferência circular e voltamos ao começo. Sem perceber, esquecemos que é assim com tudo. Quase regredimos ao trabalho recém abandonado, aos amores de anteontem, à vã procura do jacaré no lago. Esse tal de passado é uma escola que não termina de nos ensinar, custamos a aprendê-lo. Havemos de ser fortes, e deixar essa reminiscência apenas para os concursos. Provas que nada provam. Como marcar na segunda coluna da planilha do Excel um produto que subiu onze percentuais? Sujeito que copiou/colou uma questão dessas, merece guilhotina na praça Nossa senhora de Salette, lá onde os professores sofreram tentativas de assassinato e ficou por isso mesmo. Um ano do massacre, décadas de profissões, o Estado ainda é um porto com segurança, embora questionável. Vale o registro de almas aflitas em trânsito, em busca de dias melhores. Ele fez a prova em uma hora. Mas aqueles momentos anteriores que a antecederam, representaram uma viagem no tempo. No tempo de cada cidadão, o rosto com as marcas do que não se foi. Ele não precisava ser aprovado. Mas foi muito triste ver que aquilo era uma saída para muitos. Saída, da própria vida. Vida escolhida, não bem vivida. Quase uma hora para sair daquela universidade. Quase uma geração para encontrar um pouco de estabilidade. Na gangorra da existência, marcamos o X bem no meio, visando equilíbrio. No cartão, as respostas que os outros inventaram para as perguntas que não fizemos. Melhor seria termos perguntado lá atrás, se haveria sol no amanhã. Não, nós calamos e seguimos alguma trilha, que também não fomos nós que abrimos. Que bom que a semana não contém apenas domingos ou perguntas. Segunda-feira, é a primeira chance ou resposta disso. Perdeu? Calma, tem mais cinco. E tem toda semana. Ali perto do bloco novo, um antigo e tombado padoque, onde corriam cavalos...  


quinta-feira, 22 de setembro de 2016

Carta ao Amor Desconhecido




Carta ao Amor Desconhecido

Oi. Eu vou lhe contar que você não me conhece. Também não lhe conheço, mas sei de sua existência. Só não consigo imaginar onde você mora. Em qual parte do mundo você vive, assim como eu. “Assim como eu”, porque somos parecidos no que é ou seria necessário. E porque somos diferentes naquilo que podemos ou poderíamos ser. E por não nos conhecermos, sei que você vive à minha maneira. Viver à nossa maneira, é viver a solidão. É ter conhecido algumas pessoas com as quais nos relacionamos afetivamente, e não ter dado certo. Tivemos que abrir mão de individualidades fundamentais para continuar levando cada relação, você aí e eu por aqui. Nos doamos mais do que deveríamos, em prol do que a cultura ocidental chamou de felicidade conjugal mesmo que em união estável. Aquela tradição relacional em ter alguém para dividir cama e banho, aventuras e procriação, ganhos e despesas. Sim, nós escolhemos muitas, todas as pessoas erradas. Mas foi só porque ainda não sabíamos de nossa existência, paralela e misteriosamente distante, ignorando os quilômetros que nos separam. Depositamos em determinados indivíduos a nossa confiança enquanto pessoa, a nossa crença como companhia, as nossas dúvidas, nossos segredos, verdades e mentiras. Mas sempre tropeçamos, quando vemos, estamos novamente a sós, até porque não projetamos o futuro dessas relações, nos ocupamos mais de seu presente. Faz parte do caminho humano, errar afetivamente. Deixamos que o coração bobo se leve sem muita consciência da coisa, e fazemos do próximo da vez um ser muito mais íntimo do que ele merece. Nem importa quantas vezes nem quais motivos nos levaram a nos relacionarmos com os outros. Mas eu e você, somos peculiares. Entramos nos relacionamentos com pé e braço atrás. Temos, nós dois, cada qual sua reserva legal de autoestima, que nos permite a todo fim de envolvimento afetivo, sairmos bem mais ilesos do que a grande maioria. Temos uma capacidade de discernimento, lapidada no tempo em reconhecer o nosso espaço e aquele que tem ou não tem reciprocidade para ficar ao nosso lado. E assim vamos vivendo. Ora começando, continuando ou encerrando relações; ora permanecendo isolados, sem ninguém no ombro, no peito e no colo. Confesso à você, que minha fase otimista (pra não dizer fantasiosa) já se encerrou há muito, se é que eu tive um dia esse tipo de ambição. Hoje, me encontro com tamanha solidez em meus conceitos, que até minha técnica em transgredi-los não consegue ver noutra pessoa, um porto seguro. Não pela outra mulher, seja quem for, mas somente por mim. A questão é minha, individual, eu não consigo amar alguém. Minhas tentativas acabaram ou no adeus precoce ou na cama. Eu não acredito no amor. E depois de tanta conscientização, vim a saber de sua existência. Pensei que talvez, tenhamos cruzado nosso caminho, mas não aproveitamos a chance. Num parque, numa praia, num evento. Em qualquer lugar, quase nos encontramos. Mas não. Pode ser também, que moremos realmente distantes um do outro. Eu, de você, meu grande amor. E por não lhe conhecer, não acredito em outro amor. Já passou tempo demais, o desperdiçamos. Claro, que não haveria necessidade alguma de sair procurando, nós nos conheceríamos, caso estivéssemos mesmo perto um do outro, com a maior naturalidade, sem acasos. E o mundo físico não foi generoso conosco. Sem lamentos – pois quem leva consigo certezas não tem direito de reclamar ou entristecer – venho por meio desta dizer que estou mais feliz na tarde de hoje. Saber que você está vivendo aí, no seu canto, um pedaço afastado de mim, que se estivesse junto nos levaria à tal felicidade, é muito bom. As pessoas reclamam demais. Eu não, agradeço o pouco que tenho, o muito que sei e o quanto eu quis a vida. Só mesmo o tempo para trazer tal revelação, e as suas consequentes respostas. Razão, explicando todos os desencontros e os enganos, as diferenças e as indiferenças, as discussões e os silêncios: tudo assim porque não era com você. A partir de hoje, o amor em minha vida, estará representado por uma estrela diurna em meu céu. Não posso vê-la, mas sei que está lá. Vem de você a luz que eu tanto imaginava. Em forma de pensamento, de música ou de poesia, você ilumina minha solidão. Pobre daquele cuja solidão é breu. Não eu. Eu, que não posso dizer que lhe amo, pois você não escutará. Mas eu sei que é assim, você sente o mesmo por mim. E nessa loucura estelar ou dimensional entre dois corações, eu me despeço com um desejo de muita saúde e dias melhores para você. Meu amor desconhecido, você é parte secreta da minha história: eu fiz jus à sua existência. Muitos beijos. Cuide-se bem. Pena, que eu não vi o seu rosto. Talvez ele tivesse a cara do meu filho que não veio... 


Oração ao Tempo
de Caetano, por Djavan
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sexta-feira, 16 de setembro de 2016

Crônica Cotidiana 41



Consciência Nelore 
Na manhã da fisioterapia. Uma sala de espera tipicamente curitibana: doze bancos, cada um que vai chegando senta o mais longe possível de quem já está. São “margens de segurança” fictícias, coitados dos últimos que obrigatoriamente terão que se acomodar ao lado de outro organismo também doente, seja por sinergia ou tosse permanente. Ali, alguns de nós. Porque todos nós precisamos de algum tipo de fisioterapia. 90%, de alguma cirurgia oral, todos. Dentro do salão, um recorte da turba dos necessitados, remexendo-se na tentativa de voltar ao que era antes. Ou ao que nunca houvera sido. Corpos sentados, deitados, em diagonais. E muita tosse, muita. Toda metrópole, oferece onerosamente a poluição aos seus integrantes. Ainda não se sabe se adquirimos voluntariamente as patologias decorrentes dela ou não. Ninguém quer ficar doente, mas era só ir embora daqui para um lugar com ar mais puro, livre de etos, ônios, itos e principalmente óxidos, essa tabela periódica quase visível ou tangível aos nossos sentidos. Insistimos em permanecer assim. Jogam-se pseudo-argumentos no ar, como aquele que diz "a água do chimarrão não ferve viu", mas o câncer de esôfago continua (l)indo. A TV ligada no jornal dominante não por moda, mas pela antiga submissão ao controle social. Anunciava a morte de um famoso, afogado, coisa que acontece semanalmente nas cavas da região metropolitana com os desconhecidos, os espectadores não anunciados, no máximo marcados com tiras de plástico envolta do hálux nos gavetões do Instituto, o último carimbo de plunct plact zun: pode partir sem problema algum. Uma senhora resmungava sobre alguém, dizendo ser “um dos piores bandidos da política”, ignorando o fato dele ter alocado os tributos sobre o trabalho do marido dela para satisfazer as necessidades básicas de sua fiel e decenária empregada doméstica que foi embora há mais de dois anos, não só do subemprego, mas da atividade para melhor. Fora a ex-patroa - que tossia sem a mão na frente, cujo carro ficava lá fora ocupando duas vagas de idosos e sem credencial - o resto parece do bem. Ao menos, não se via nem ouvia ódio escorrendo pelas comissuras labiais. Entre pesos e cordas, bolas e faixas, fios e géis, profissionais e pacientes se entrelaçam (os donos não investiram mais em infraestrutura, a quantidade de pacientes lhes era satisfatória) como numa colmeia sem Rainha, ela fora deposta alguns meses antes por uma turma de marimbondos a serviço de ursos setentrionais e por intermédio de ratazanas locais, sem revolução dos bichos. No colchonete azul-calcinha, caraminholava eu até que ponto somos racionais. Recuperamos o movimento físico, desprezando o respiratório. A demografia por m² do imóvel era alta, janelas abertas retirando eventuais odores de pés e meias mal cuidados, de axilas sem manutenção. Só não levava embora o hálito do mal nas palavras da odiosa senhora, representando figuradamente a impossibilidade de emancipação social devido à inconsciência de boa parte dos seres sobre a coisa pública. Lá fora, o ar da republiqueta é impróprio para gente cívica, a desordem foi geral. A fisioterapeuta fazia ultrassom em meu joelho esquerdo, de olho nos outros cinco pacientes que comandava ao mesmo tempo. Viés curativo, esse é o atualíssimo drama nacional, sem ênfase na prevenção, na conscientização e no progresso. Alienar tudo, até que não exista mais nenhuma clínica pública, todos estejam adestrados pelo jornal da TV, pelas grandes corporações internacionais e pelos grupos de saúde privada, restando somente a manada, pagando por tudo e aguardando na fila do abate social. Sua colega de trabalho sorriu para alguém, ela tinha fetiches por pacientes de meia idade. Meu fetiche se foi. Era por uma sociedade mais sadia... 


quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Sessão Educteto – O Filósofo Prolixo – Arregaçando a Escolástica.

 A Idade do Coração 

          Não é preciso ser cientista para determinar a idade do coração, basta observar o registro geral das pessoas. Ou é? Eles, os cientistas, apenas classificaram esta como idade “cronológica”. Segundo os mesmos, ela corresponde ao número de anos que vivemos. Como a coisa estava muito simples, eles inventaram a tal idade “biológica”, indicando os anos que nosso corpo possui. Alegam que uma gama de fatores influencia nossa idade biológica, fazendo-a variar da cronológica. Ou seja, quando mais saudável a sua vida, menor a sua idade biológica, a cronológica não muda nem se você se jogar pelado e de cabeça na valeta do mal. 
        Mas e aí... já que o referencial é a saúde, onde fica o coração humano nessa outra história criada pelos homens? Mais, o que significa ter dentro do peito um coração saudável? Deixemos de fora as questões nutricionais e as aeróbicas, de tão óbvias que sempre serão. As patologias cardíacas, também as esqueçamos junto com os aspectos médicos gerais devido às suas especificidades e limitações ou não (teríamos de analisar caso a caso, competência exclusiva da literatura médica); até porque o questionamento aqui proposto é de outra dimensão. 
         Tentemos nos ater aos aspectos psicológicos da trama, como por exemplo, as influências do nosso vizinho da cobertura, o cérebro humano. Nesse condomínio orgânico, não existe um síndico propriamente dito, mas o voto da cobertura, sabemos que vale por dois. Filosofar, é preciso. Vamos lá, levantar a mão sedenta e tentar outra vez. 
        Um coração que amou uma só vez a vida inteira, é um órgão saudável? O que pouco amou, é modelo de equilíbrio salutar? E aquele que amou bastante, é mais sadio do que os anteriores? E o que se enganou por todo o tempo, atribuindo amores às suas ilusões, nunca tendo amado de verdade, está novo ou velho demais? Quais seriam as respectivas idades “biológicas” dessas bombas físico-químico-elétrico-musculares? 
         O Centro de Estudos Relacionais Beco da Toca, filial Braço do Trombudo/SC, trouxe à baila da comunidade experimental, quatro histórias paranaenses (para evitar suspeições e/ou revelações locais) de vida que correspondem aos exemplos acima, o que nos ajudará na busca do coração saudável, coisas que os nossos pais e a escola deixaram de nos ensinar, como tantas outras. Aliás, nem a educação informal (da rua) fez com que todos nós aprendêssemos a(s) lição(ões). O dito popular “errar é humano” é o consolo de eleição que empregamos na maioria dos casos que prejudicam a nossa saúde. 

           Janaína. Bela, singela, mas não apenas do lar. Trabalha num consultório médico, junto com o marido, o bam-bam-bum da cidade interiorana. Já na faculdade, via em Juvenal um exemplo de prosperidade, tal a ambição (pra não dizer materialismo compulsivo) do moço: “pronto, é com esse que eu vou”, decidira ela no 2º período, ele no 10º. Deu-lhe uma mensagem de amor, uma caixa de chocolates, um estetoscópio e logo depois o seu hímen. O príncipe encantado, todo de branco, só faltava o cavalo cabeludo. Sim, ela resolveu amar aquele sujeito, não obstante a arrogância, a má-educação e a soberba daquele pequeno homem, grande capitalista. Ontem, ela encontrava camisinhas usadas (e cheias) sob a cama dele na república, hoje tem medo de vasculhar seu smartphone. Vez em quando remete sua lembrança a um coleguinha de faculdade pobrezinho, coitado, mas que adorava ela; imaginou se seria feliz se o escolhesse, quem sabe tivesse acesso ao que as pessoas chama de carinho, cafuné... mas Jana já nem sabia mais o que era felicidade, contentava-se e muito com a fartura de bens e posses e como não poderia deixar de ser, do status do “casal” na pequena Jandaia do Sul. Na hora do amor, ele ficava por baixo e ela o estocava escalando sua barriga peluda (com as outras, Juvenal era ativo). Esse é o coração que amou uma só vez, a vida inteira; e não amará mais. 








         Ferdinando. Juntando as duas mãos, dava para contar nos dedos aquelas de quem gostou. Mas apenas gostou, posto que nunca fora amado. A realidade, o transferiria para a categoria dos que nunca amaram, mas ele, assim como tantos, considerou amor. Apenas fez de algumas admirações, amores inventados. Uma pequenina coleção de desencontros. Sujeito diferente esse, uma raridade relacional. De tão esquisito, foi tachado como estranho, louco, antissocial, anormal. É duro ser leal, honesto e sincero hoje em dia. Quem quiser alguém, há de ter muitos poréns. Falava sobre tudo, elas desviavam. Perguntava quase nada, elas enraivavam. Discreto, incompreendido se tornava. As poucas mulheres que levou para a cama, gozavam tanto que achavam que ele era um animal. É que ele oferecia sexo como espécie sendo carinho como gênero: ninguém entendia. E por não entenderem, apesar do sexo não davam carinho a ele, que se recusava a gozar em razão de igualdade de direitos. Se lhe ofereço água, espero água também. E nesse vai e vem de oscilações afetivas, não tardava olhar para trás e concluir estórias. Estórias não têm H de homogêneo, nem I de identidade. Chegou ao fim da estrada sem ter sido amado. Foi querido como um objeto pertencente ao patrimônio pessoal, tal qual ocorre com os automóveis e os apartamentos, os alisadores de cabelo e os jogos de panelas; jamais como pessoa humana. Sua última união, Fatimette, foi uma farsa como namorada (era cúmplice, mas dos fofoqueiros), falsa como pessoa (mentia tanto que quase cuspia) e fraca como mulher (sucumbia à ruindade da mãe, aos caprichos do filhinho e às frustrações do passado). Depois disso, recolheu o coração e o prepúcio. A solidão é muito mais higiênica. Esse, é o coração que - mesmo forçando a convenção - pouco amou.  







            Maristela. A cada olhar, um amor nascente. A cama era um destino fácil, quase nunca esfriava de tão rápida que era a troca. Praticamente nunca houve uma solução de continuidade no seu sentimento, a coisa se dava em movimento retilíneo uniforme, tipo biscoito sem parar. O importante era o título, “namorado”. Depois do abate, é que ia conhecendo os sujeitos. E se entregava, e não largava do pé, da pose, do pau. Todos, como se fossem o primeiro. Todos, com o carimbo do ciúme, a tal “prova do grande amor” que tanto indicam. Trinta anos de idade, começou aos quinze, quase dois por semestre, está com o último há dois anos (Múrcio, o manso), essa a sua estatística relacional: pencas de amores. Ouviu Erasmo e seguiu como lema: “preciso de um homem pra chamar de meu”. E assim foi, desde sua adolescência, um rodízio sentimental oneroso demais para a sua individualidade, sua imagem e seu presente. Percorreu as videntes, o alfabeto, as baladas, os castelos e os psicólogos. Nunca ficou sozinha, seu quarto era sempre uma gritaria. O ciúme dela era apenas um apêndice, cujas crises não admitidas foram fatais. Concluíram que o problema não era ela, e sim os homens, todos iguais. Quase cinquenta, um polaco de cada colônia, mas todos iguais. Esse, é o coração que amou bastante. 









              Geraldo. Esse foi pela contramão da história. Criou-se querendo sexo, em quantidade, assim nessa procura desvairada haveria de encontrar um grande amor, provavelmente após um belo orgasmo. E investiu em todas, as idades, as profissões, as classes sociais, as naturalidades, as alturas, os pesos. Um detalhe: esqueceu-se de que do lado de lá, havia pessoas antes de serem mulheres. Seu primeiro amor foi Gracinha, uma ninfeta de 16 anos. Largou até faculdade para copular com a moça nos parques da cidade dentro de um Chevette, foram presos duas vezes, o pai dele pagava ao delegado sem burocracia. Claro que ela cresceu e o trocou por um mais novo, menos tarado, mais conversador e que proporcionava outros prazeres a ela também. A segunda, Gláucia, um fruto da noite na balada Studio 1250. Trepava mais que ele. Certa vez, passaram a virada de ano na Ilha do Mel cruzando feito dois animais, dentro da barraca, o vira foi um pedido que ele fez pra trocar de lado: ao invés da entrada para o ano novo, ele queria é a mesma entrada para o velho ânus. Também trocou-o (o namorado, Gláucia trocou, e não o ânus), mas desta vez por um mais bonito, mais cheiroso, mais promissor. A última, Gilda, conquistou-o pelo seu referencial, domesticando o bicho de tal forma que as correntes são quase visíveis. Ela, um "sucesso" (só ela achava isso) entre os homens na sociedade; ele, não pode nem acessar a web. Bateu na família dele, nos amigos, enfim, ele só permanece junto porque “a ama”. Sexo, hoje, só na hora em que o 15º médico especialista em reprodução manda, umas duas vezes no mês. Como consolo, a bronha na hora do banho trancado no chuveiro quando ela ainda não chegou do serviço. E todas as outras dezenove foram assim, com base na carne. Enganou-se com seu método, como a água faz com a pedra. A água demora mas consegue, ele não obteve êxito, temporal nem espacial. Esse, é o coração que se enganou por todo o tempo, atribuindo amores às suas ilusões, nunca tendo amado de verdade.








             Pensar e refletir se a quantidade ensina alguma coisa. Ou melhor, se a variedade que traz a quantidade, tem a ver com a qualidade das relações. E mais ainda: se as relações amorosas influem em nossa qualidade de vida. Com quantos corações precisamos nos relacionar para que saibamos levar uma vida sadia? Nenhum? Basta um? Alguns? Muitos? Os corações aprendem ou são as cabeças que ensinam o organismo? Há uma doutrina que oriente feito a constelação do Cruzeiro do Sul? Quais as cartilhas do amor, onde elas estão guardadas, a oito chaves no Vaticano? 
          Muita interrogação para pouco ponto final. Ausência de exclamações. Texto pobre, diante da proposta. Exemplos, comuns e banais. Mas há de se extrair algo de tantas linhas tortas. Parece, que o tal amor sugere a existência de corações saudáveis. Coisa que não é sine qua non. Não fosse assim, Ferdinando já teria falecido. Por outro lado, há mentes insanas achando que estão amando. Eureca! Enfim, uma exclamação, duas! A mente, coordena os movimentos da musculatura estriada do organismo, aquela ligada aos ossos, significando condução da relação. É a maioria. Sendo assim, uma mente insana sugere um coração sem saúde. 
             Nesse balaio de higidez e enfermidades, pode se chegar à conclusão que a coisa não é tão óbvia assim. Os quatro corações apresentados, tiveram vidas afetivas completamente distintas. Talvez, não importe por quanto tempo um coração se aliene. Ou seja, por quantas vezes ele se entregue. Quem sabe seja interessante para a saúde geral, saber para quem ele faz isso. O outro corpo, a outra mente, o outro coração. Então, quer dizer que a saúde afetiva de A depende da saúde afetiva de B, que por sua vez também depende da saúde afetiva de A. Interdependência. Como A pode ser saudável, se ele mal conhece B? E vice-versa. Será que no meio da relação é que eles se tratam, se medicam, se curam? Ou seguem doentes por tempo indeterminado? 
              Penso que o coração saudável, é o que aprendeu a lição passada. Que fechou o caderno e o colocou na estante do sótão. Que dá chance ao amanhecer. Mas que não espera pelo sol. E que muito menos vai atrás dele. E quando vem o sol, não fica remoendo folhas antigas, já amarelas, manchadas pelos erros e frustrações. 
           Um coração saudável, portanto, é um coração novo. Limpo, zerado, virgem para o presente, livre do passado racional e emocional. Não importa sua idade, cronológica, e sim a biológica, no sentido de que o que a mente faz em prol dele, o coração. Talvez por isso os cientistas inventaram esta convenção. Pena que não divulgaram a contento tais experiências. 
            A idade do coração? O povo não sabe que os corações param de se desenvolver no fim da adolescência. Quem envelhece, é a mente. E não há idade para este processo de envelhecimento mental, pode começar na própria adolescência. Envelhece-se, a cada novo relacionamento em que se deposita coisas pretéritas. Rejuvenescer, depende somente de você, da sua capacidade de acondicionar o seu tempo no espaço devido. Como? Fazendo a assepsia total do órgão, durante e após cada relação. 
              A idade do coração, vai até dezenove anos, no máximo. Não importa a sua idade cronológica. Por isso falam em maioridade. Seu coração terá sempre dezenove anos. Daí pra frente, é você quem pensa... e você é o que você pensa. Ou seja, você é aquilo que faz com o seu próprio coração.