DEIXEM HELENA
Uma época. Permanecemos quietos
em nossos lares, tentando sossegar a alma diuturnamente atingida pelas
vicissitudes do caos sociológico de relações. Eis que, inadvertidamente,
aparece alguém em nome de sua boa ação, ingenuamente imbuído da mais nobre
tentativa em complementar-nos, como se amputados fossemos. O mundo ideal é par,
junto, casal, estabelece vínculos como condição de sobrevivência. Mãos dadas, a
emblemática imagem que sela a modernidade dos relacionamentos felizes na
cidade. Alguém sozinho, milhas distante do padrão contido na cartilha dos
cupidos sem asa nem noção, está completamente às margens da sociedade
modelo. É um ser afastado, deveras rude, idiota talvez, sobre o qual deve
recair todo e qualquer preconceito. Seu destino: o banimento. Só há uma
salvação que o permita inserir-se novamente no seio comunitário, a união com
alguém. Não importa quem seja, como seja ou qual a razão de ser disso. O que
interessa, são os dois, determinados matematicamente. Aquilo que os une, fica
em terceiro plano. O que não se admite, é a solidão. Sim, todos os sozinhos são
solitários, pois não amam ninguém, não gostam de nada e fazem jus ao seu
recolhimento afetivo. Gente estranha, cheia de defeitos, deve ter suas parcas qualidades
dirimidas ante a simples escolha de refugiar-se neste enorme planeta tão cheio de
possibilidades. Erro grosseiro, a ser reparado antes que a morte apareça como
troféu de merecimento. Para tanto, preceitos religiosos indicam o caminho, a
ser traçado na base de dádivas, ofertas e doações, de tudo aquilo que se possa
ter, inclusive alienar sentimentos... A mulher, complementação do homem
e vice-versa. Diante disso, as pessoas apresentam uns aos outros, torcendo para
que dê certo, ignorando que em considerável número de casos, as consequências
não passam de meras conveniências, as quais são oficializadas mas não assumidas publicamente. Juntos na praça, no shopping, nos
restaurantes e no baile horizontal dos suores. Distantes nas perspectivas... Oh mundo de Homero,
transformando os sujeitos em embalagens casadas de produtos de naturezas completamente
diferentes. O braço é colocado à disposição, para ser torcido a qualquer
momento de dificuldade, conflito de vontades ou decisão. Na sequência, os
outros membros. Depois disso, os órgãos internos, até culminar com a alma. A
submissão como regra, evitando desgastar mais o que já nasceu de atrito, forçando aquilo
que deveria ocorre naturalmente. Única exceção, faz-se ao amor verdadeiro, pois
deste não se fala e nada se escreve, apenas se vive, o que é plenamente
louvável e deve ser substancialmente reconhecido. O resto, é especulação
travestida de amor, um amor inventado, supletivo, falso. Fantasias velhas,
rasgadas e démodé, que alguns usam querendo demonstrar estabilidade, bons
tempos e, claro, a tal felicidade. Aparências, nada além. Na próxima,
desligarei a luz. Assim, ninguém perceberá que estou aqui, tranquilo em meu lugar.
Poupar-me-ei de magoar alguém num encontro marcado por estes funestos agentes
de acasalamentos de índole terapêutica, fazendo com que eu e ela permaneçamos
distantes de nós, mas muito próximos de nossa individualidade, autonomia e
independência sentimental. Pois eu continuo gostando dos meus próximos. Pois eu
continuo amando a vida, contemplando as estrelas e sonhando com o mar. Acompanhando
à beira do rio, no pé da montanha sob o mesmo sol dos helenos, os dias
melhores que estão vindo. Mas se você, agente enviado de Odisseu, me encontrar
caminhando a sós pela rua, não hesite ao menos em me cumprimentar. Prossiga
reto depois disso, levando consigo e para longe de mim seu dualismo, jeito magneticamente polarizado de achar que a vida não precisa ser pensada, podendo ser forçosa e artificiosamente provocada ao
invés de obedecer a espontaneidade dos fatos, à não casualidade dos encontros, o destino. O teatro, é para os profissionais. O resto, nem amadorismo
poderia ser...