Diametralmente oposta a qualquer ordenamento jurídico, DESUNIÃO ESTÁVEL é uma imaginária relação multiafetiva ousada entre a Poesia e a Música. Como esses valores estão em declínio nos dias pós-modernos, decidi promover impulsos de acasalamento sentimental entre ambas, com a substancialidade e a emoção que brota dessas duas formas de expressividade dos sujeitos na sociedade civil, ou seja, nascentes da natureza humana. Aos amantes, as cortesias da Casa.
Há um lugar que visito agora. Nem ermo, nem
suave. Nem hostil, nem acolhedor. É para onde confluem todos os meus eus. Uma
reunião de todas as minhas possibilidades, passeando de mãos dadas com o
impossível. Todas as minhas convicções, abraçando fortemente as minhas
incertezas. Todas as minhas respostas, beijando-se na boca com as dúvidas
minhas. Meus valores, agarrando-se sem qualquer pudor em um novo mundo meu. Minhas perspectivas, fazendo amor explícito com meu desamor. Uma terra de ninguém,
onde todos são ao mesmo tempo rei e súdito, soberano e vassalo, amo e escravo.
Onde a lei não existe, a ordem não prospera, a desregulação é o lema. Aqui, não
há constelação alguma, pois todas as estrelas são cadentes. Aqui onde os astros
dançam, a natureza canta e seus elementos festejam. Uma espécie de amálgama entre foz, curso e delta da vida em torno de mim. Tudo isso numa junção entre
marco zero e infinito. Eu nunca estive aqui. Uma beleza que me confunde, me
seduz por tanto, encantamento que atrai e sustenta, à medida que me afasto ou me aproximo dela. Então não há
distâncias ou espaços, que pudessem limitar a fronteira entre o imaginário e a
realidade. Pois aqui, eu sou tudo dentro do nada, sou algo fora do tudo. Dou um
abraço forte em mim mesmo, como se eu estivesse por todo o tempo atrasado, por
todo o espaço perdido. Penso, reflito, existo. Mais que isto, sinto que eu me
encontrei. Porque quando eu olho para este céu, chegam todos os tipos de considerações
e justificativas que explicam a minha vida até aqui. Levado pela força motriz
da natureza, cheguei ao Éden da minha história. Tantas maçãs ao meu dispor. Tanta água para me
banhar. Tanta luz a me guiar. Só falta encontrá-la, para agradecer a carona com fraternos abraços no calor de sua alma, além de virtuosos beijos na paz de seu corpo...
Como definir essa
palavrinha tão pequena mas tão ordinária, para depois raciocinar sobre a sua
amplitude, tamanho, distâncias e tantos outros lances dimensionais. Não, ela
não pode ser definida. Só os inconsequentes como eu tentam fazê-lo, sempre em vão,
conseguindo no máximo conceituá-la. Defini-la seria limitar, especificar,
conter, dar-lhe sentido estrito, alcance mínimo. A inconsequência se encontra na tola
subsunção humanoide de um sentimento, como se fazer isso fosse preparar fatias
generosas de abacaxi com canela da Índia. É, pode-se atribuir algumas extensões
ao substantivo mais querido. Mas calma lá: antes de tudo, a questão da competência. Quem é que pode falar disso? Será que apenas os que estão amando? Ou
os teóricos da ciência para-sentimental também estão qualificados? Basta seus diplomas,
certificados e aceitação popular? E quando eles falam, falam do amor deles ou
do amor dos outros? Quem é capaz de compreender o sentimento alheio? Tenho de expulsar perguntas dentro do espaço das respostas,
mesmo que eu não as encontre. Então adeus, interrogações metropolitanas, vocês
não trouxeram vale-transporte. Entro no tubo. Sinto-me um grão dentro de uma
cápsula via oral, a ser deglutida na próxima parada. Então...é isso mesmo: a
próxima parada é uma questão de tempo. Portanto não se pode falar hoje sobre o
amor do amanhã. Falar do amor, seria uma questão kriptonítica, no sentido de parar
rotação e consequente translação do mundo e seus planetinhas de condomínio. Um amor que é hoje assim, amanhã mesmo
pode estar torrado. Pulou o assado. Outro amor, que ontem era daquele jeito, hoje
pode estar bem melhor. Saltou longe do amanhã. Pensar se o amor está ou é. Se a ele conferimos
tempo ou espaço. Quais as grandezas que acompanham a sua rota. Penso que a da
companhia. A da ouvidoria. Do conselho. Do estoque. Mas isso são cousas empresariais...gestacionais...lembrando
gestação, útero, gravidez...lembrando gravidade...isso: amor é desafiar a lei da
gravidade. Um desafio involuntário, que solta, eleva, sublima na direção do outro.
Um outro que não pode estar por terra, há de ser suspenso no mesmo ar que a sustenta.
Dois corações flutuando ao sabor da brisa, dos ventos, das tempestades, e sempre
pairando ali. Ali onde o colibri, o beija-flor e a passarada toda costuma piar:
na alma da natureza. Então o amor é um estado de perfeita sintonia entre o ser e a natureza. Talvez
aí mesmo estivesse colocada a caixa do amor...mesmo que ele lá não caiba...pois é uma caixa
sem tamanho...mas é onde cabem apenas dois dentro...uma caixa, simbólica caixa...que
nunca pode se fechar para a vida. Mas coitados dos amantes que ainda não aprenderam abri-la com a inteligente condutância de um hábil guia...
- “Mas diga-me lá,
meu rapaz...costuma viajar pra fora? Que países conhece?”
- “Não. Eu costumo
viajar pelo interior. O interior é um lugar maravilhoso. Eu vivo indo pra lá.”
- “Ah, mas você
precisa conhecer outros países meu caro, não sabe o que está perdendo.”
- “Perda, é algo muito relativo meu senhor.
Penso que não se pode perder o que não se tem."
- “Então, é isso
mesmo que eu digo, tem que ir pra lá para ter alguma coisa. A relatividade é
uma questão de espaço.”
- “Não penso
assim. Quando uma coisa é mais relativa que a outra, isso torna-se absoluto,
daquela coisa em relação a esta outra.”
- “Meio confuso,
não?”
- “Não.”
(tempo de pausa
para ininteligibilidade)...
- “Então, vamos
nos limitar já que a ocasião sugere. Que lugares conhece por aqui? Campo
Grande? Brasília, Manaus?”
- “Bem...eu repito
que eu prefiro o interior.”
- “Mas por que
esta predileção interiorana, de mentalidade rural, ligeiramente tardia em
relação a nós? Vai de camionete, eu presumo!”
- “Quanto ao
veículo, também não. É tão simples caminhar pela grama, mas as pessoas preferem
ir pelo asfalto. Porque ele é mais firme, não é escorregadio, e vai-se mais
rápido. Assim, ignoram a beleza da paisagem..."
(tempo de pausa
para irritabilidade, ainda do inquiridor)
- “Quanto à
preferência...sabe, meu caro...porque lá no interior é outro mundo. Um mundo totalmente
diferente. Lá não tem fronteiras, porque não há distâncias. E por não haver
espaço, não há tempo. Existe apenas clima, quase sempre agradável. Pois quando
há tempestade, ela passa por cima, não cai. E neste clima com excelência de
paz, a gente pode tudo. Se quer exemplos...lá, a gente pode caminhar à vontade
e seguro. Encontrar quem a
gente quer, embalada na rede da varanda numa casinha de campo à beira do
riacho. A gente pode encontrar
quem a gente quer, sentada na mesa da cozinha tomando um café tipo exportação
feito no bule sobre o fogão à lenha. Encontrar quem a gente
quer, entocada num cômodo isolado artesanando seu ofício ajudando a sustentar de pão, água e luz todos os outros ambientes. A gente pode encontrar quem a
gente quer, estirada num sofá escutando música de preto convidando pra levantar
e dançar junto. Encontrar
quem a gente quer, refastelada numa cama lendo um livro de cabeceira de um
poeta fugidio. E a gente pode encontrar quem a
gente quer, parada ao nosso lado de mãos dadas aguardando o próximo passo no
caminho da felicidade. Geralmente, quem a
gente quer, lá não está em movimento. A razão disso, não se sabe exatamente...
- “Que lugar meio
estranho, não?”
- “Para mim, é
extremamente familiar.”
- “Onde fica
isso?”
- “No meu
interior. No interior do meu organismo. Eu adoro viajar entre a planície dos meus pensamentos e o plano alto do meu
coração.”
MÚSICA INCIDENTAL - "INIMAGINÁVEL" / TROY ROSSILHO