segunda-feira, 19 de novembro de 2012

AUTORALLIA << Elegia 1971 / por Brasil d'Algarve




ELEGIA 1971
Mais outro sopro de vida. E assim nos lançamos vestidos de carne ao submundo das existências trôpegas por um lugar ao sol, em nome de algo que batizamos sem fé alguma por ‘alma’. Ganhamos alguns sentidos, feito subsídio, para que possamos prosperar na centelha da humanidade, mas não nos permitimos desenvolvê-los. Padecemos à margem dos nossos próprios caminhos, com os pés perfurados por ganchos morais fincados no pântano de nossas esperanças úmidas chamadas ‘sonhos’. Somos ao mesmo tempo vítima e algoz, sem que ninguém do lado de fora dos nossos corpos seja responsável por nosso fracasso. Deixamos para a semana que vem o que nunca se realizará, velando os desejos natimortos na apropriada capela de nossas próprias vontades, assim como os índios repousam seus falecidos às intempéries da justificante estupidez climática dos dias e das noites. Analfabetos temporais, ignoramos a força dos anos recaindo sobre nosso espaço inquilino, pois ele é da terra que possui natureza distinta. Fazemos dos costumes, hábitos suicidas que matam aos poucos toda e qualquer forma de sentimento que eventualmente consiga nascer em meio ao caos social instaurado pela ausência de virtude. Seguimos sem inveja, mas com determinada dó das pessoas prontas que nada tem mais a aguardar senão servir o próximo cálice de sucesso, através da anunciação bastarda de alteridade, em nome do seu venerado ‘eu’. Dó que não sentimos de nós mesmos, pois carregamos a vã certeza de que o mundo não é só aqui. Pena que isso não é suficiente para tirarmos a fantasia interior que só nós apreciamos, porque apenas nós é que assistimos ao desfile de nossa morosidade conservadora de atitudes, da lentidão de movimento de nosso espírito, e do nosso covarde consolo de percepções, conjunto este que apelidamos de ‘amor’. Foi naquela virada de ano que eu vi o sinal. Às zero hora do primeiro dia de janeiro. Marco zero da minha infelicidade, que eu não combati como herói, apenas fui espectador de uma vida sem arte registrada. Se é tarde para transformar, foi muito cedo para reconhecer. Ao menos, a sobrevivência. Porque a cor púrpura, ela esvanecerá...


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