No
banco público lotado, as pessoas-clientes-correntistas-números atrás dos rumos
de suas contas privadas. Não havia mais lugar para sentar e as senhas se
demoravam a trocar no painel bonitinho. Um capricho do capitalismo, quase todos
sabem, poucos reconhecem. E o escriturário funcionário já ‘trintenário’,
pilotando um caixa humano, na complicada hora do almoço, como alertou Belchior. Com
urbanidade, ele ia atendendo e satisfazendo as necessidades daquele pessoal
impessoal. Intuitu personae, o
Direito diria, se não tivesse morrido ou sido morto, não dá no mesmo. Geraldo
nem espiava de canto os guichês ao lado, não queria absorver problemas alheios.
Mas até que naquele dia a coisa fluía bem, desde as dez da manhã, tudo conforme
a etiqueta invisível do normal. Só que na vida, tudo muda e não escolhe hora
para fazê-lo. Um problema com o FGTS de um homem fez com que este humilhasse de pronto e sem razão nosso caixa-protagonista. Logo após o berro do sujeito revoltado in loco, Geraldo
pediu-lhe calma e disse que já voltaria. Ele não foi lá para dentro a
resolver o impossível: foi cuidar de si mesmo. Muito se questionava essa forma
de cuidado, se voluntária ou não. Ele não queria nem saber, assumira ser mais
uma gota no oceano de dependentes químicos da quinta droga mais consumida no
mundo, a tarja preta lhe remetia a alguma luta marcial, espécie de consolo. A
categoria do medicamento que ele consumia há quatro anos, parecia insinuar
coisa divina, algo como ‘benzimento”. Ele era um indivíduo aparentemente normal,
sem evidências externas ou sinais de uso daquela determinada droga, prescrita
como pão de ló, para quase todas as queixas e doenças, pelos médicos lineares que
seguiam os protocolos das grandes industrias farmacêuticas. Certa feita, quando
uma substância dessas precisou ser liberada por uma alta patente sanitária do
ministério federal, o raposão do laboratório chegou na concessionária com
dinheiro vivo para dali levar um carro zero, à vista, e deixar na garagem da referida autoridade como cortesia. Esquentai vossos pandeiros, país. Mas o doutor
precisava ganhar o paciente, um laptop mais moderninho e a fama
de curandeiro, apesar dele nunca ter falado para suas vítimas (sic) que aquela
terapêutica não era cura, ele apenas seguia a esteira da Medicina, sem
questioná-la, ausente de reflexão e senso crítico: “Putz, que merda! O notebook
veio sem Windows! Vou trocar de laboratório, o fármaco, continuarei com o
mesmo.” Cortou o comprimido ao meio, engoliu em seco, em busca da tal cura, não
obstante ilusória. Não precisou aguardar vinte minutos para começar o efeito
clínico da bomba, o psicológico já se instalou de imediato. Fonte no deserto,
bolachinha do pacote, luz no túnel, era o que o bancário sentia. “Refeito”,
voltou ao caixa para explicar ao maleducado que um valor seria liberado dentro
de três dias. O troço era milagroso mesmo, em questão de minutos, “tratava”
ansiedade, estresse,
insônia, TPM, irritabilidade, somatizações, úlceras, gastrites, colites, doenças do
coração, epilepsia, síndrome do pânico e, como não poderia deixar de ser, da
moderníssima depressão. Lembrando que a Associação Americana de Psiquiatria,
através do seu perverso manualzinho que já está indo para a sua sexta edição, não
cansa de apresentar a cada fornada, dezenas de novos transtornos mentais,
altamente patológicos segundo eles; um dos mais escabrosos foi o “transtorno de
perda por fim de relacionamento afetivo”... curioso, é que nossos avós
ignoravam completamente a bipolaridade, a síndrome do pânico, a hiperatividade
e tantos outros; detalhe: viveram bem mais e melhor do que nós. Quanto mais indicações houver, mais notoriedade ganha a especialidade farmacêutica e o respectivo
fabricante. Quem será que sai perdendo? Voltando ao nosso herói da resistência,
Geraldo, depois do relaxamento psíquico, vinha o muscular. Era o que lhe bastava,
diante da turba exigente, do chefe prepotente e de todo mundo que não escova
direito os dentes. A ansiedade caíra por terra, mas ao lado do seu caminho, sem
abandoná-lo: quando retornava à pista, mais um comprimido depressor “resolvia”. Pena, pois ele não sabia que apenas os sintomas estavam sendo recolhidos (tal qual
um prepúcio mal circuncidado, o pênis continua a existir). Que apenas a
conscientização frente às consequências dos seus problemas também diminuía,
claro que sem solucionar as suas causas. Não admitia ele que isto era uma baita
fuga da realidade. Mas a propaganda anunciava “Que bom que existe um remédio para melhorar a minha vida!” E nas
salas de abate, os doutores sem doutorado seguiam a cartilha na base do “Tome este tranquilizante à noite, assim você
relaxará e evitará passar a madrugada em claro pensando em seus problemas,
acordando mais disposto, com energia e paz de espírito.” Sedutor, não?
Quase erótico! Que tesão de consulta! O cara é bom mesmo... mas de Medicina ou
de Marketing? Geraldo já sabia dos meandros para conseguir mais cartelas, já
que o uso indiscriminado é extremamente perigoso, por isso os mafiosos de
branco (alguns poucos) regulavam sua prescrição: era só trocar de médico ou
passar naquela botica onde vendem uns paraguaios da hora, até sem receita. É,
porque na ciranda da farmacologia vadia, o uso crônico faz um problema virar
transtorno de maior monta, complexidade e resolução. Fora dali, do banco, coitado,
ele não percebia as alterações que já haviam tomado conta de seu organismo:
boca seca, oscilação de humor, perda de memória, desorientação. Letargia, olhar
lento, diminuição de reflexos e coordenação motora, fala vagarosa e enrolada,
algumas vezes tontura e, enfim, a sonolência que ele tanto queria para evitar de passar a madrugada em claro pensando em seus
problemas. Pergunta no ar: como é que alguém poderá resolver os seus
problemas sem pensar neles. Talvez do céu despencará uma solução, talvez Deus dê
um tempo na ajuda às crianças refugiadas na Europa para se concentrar nos revezes de Geraldo. Só que não. Imagine se ele fosse ler a bula do composto?
Risco de dependência química/psicológica > parada cardíaca > parada
respiratória > coma > morte... Ah tá, mas o tranquilizante não é placebo,
ele realmente tem um mecanismo de ação especifico, agindo ao nível das sinapses,
lentificando a atividade cerebral natural do órgão, diminuindo o número de
neurotransmissores responsáveis pela condução dos estímulos, deixando o paciente
em câmera lenta, ou seja, interferindo radicalmente no funcionamento (leia-se
fisiologia) da natureza humana... imagine-se isso além do período recomendado
de no máximo dois meses... imagine-se os Geraldos e o uso crônico...! Iluminai
os terreiros, que nós queremos sambar, nação! Não há mais nação. Os três
poderes apresentaram as suas armas, assaltaram a democracia, a gramática e as
famílias. Famílias, antigamente, eram bandos de pessoas unidas por laços de
sangue ou criação. Hoje, existem as famílias dos benzodiazepínicos, os quais
invadiram os organismos de pessoas normais e as transformaram em gente passiva,
sedada, dependente da indústria e por isso tudo, incapaz de refletir. Não há
mais senso, tampouco crítico. Há uma entrega, como na guerra o refém capturado
se ajoelha aos pés do vencedor. Caso Geraldo tivesse pensado mais profundamente
em suas questões, sem medo, se exposto e conversado com alguém amigo, e resistido à
tentação de uma consulta de caráter eminentemente paliativo, ele sairia dessa, talvez nem tivesse entrado.
Hoje, ele sai do trabalho, para sofrer os efeitos colaterais que resultam da
relação de dependência que ele estabeleceu com uma substância química. Caso ele
interrompa a administração da mesma, entrará em síndrome de abstinência, podendo
ocorrer tremores,
sudorese, desidratação, hipersensibilidade ao som e/ou à luz, cefaleia, espasmos
musculares, distúrbios gastro-intestinais e do próprio sono. Taquicardia, pânico,
paranoia e convulsões, nem imaginar uma coisa dessas, embora possível. Enfim, essa é a triste
história de Geraldo Bonfim, um sujeito boa praça que tornou-se mais uma vítima
do controle social que a superestrutura dominante exerce sobre a população.
População amedrontada, acuada, maltratada e mal medicada, mas acomodada no aconchego de seu
lar, o refúgio ideal para quem foge de si mesmo. Povo oprimido, também na base do comprimido. O gado procria e assim se
renova, à maneira daquele manualzinho chamado DSM (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders).
Seria isso outra forma de aculturação? Seriam os deuses astronautas? Seria
Bentinho realmente um corno? A história da humanidade é permeada de respostas
que não precisamos perguntar. Elas voam com o vento. “Geraldo, feche a
janela!!!!" – gritou a televisão... Na mesa, o jantar, os parentes e o silêncio dele, artificialmente induzido. Geraldo é bem moço para tanta tristeza.
Chegou a coisa parecida para lhe arrastar sem ter visto a vida...
Diametralmente oposta a qualquer ordenamento jurídico, DESUNIÃO ESTÁVEL é uma imaginária relação multiafetiva ousada entre a Poesia e a Música. Como esses valores estão em declínio nos dias pós-modernos, decidi promover impulsos de acasalamento sentimental entre ambas, com a substancialidade e a emoção que brota dessas duas formas de expressividade dos sujeitos na sociedade civil, ou seja, nascentes da natureza humana. Aos amantes, as cortesias da Casa.
sábado, 25 de março de 2017
terça-feira, 7 de março de 2017
Apenas Outro Velho
As constantes
dores de cabeça anunciam uma condição não favorável no hall da meia-idade.
Um estado orgânico de coisas, sobrenadante no meio agar-agar da realidade, por
vezes precipitando nas sequelas da solidão. Ele não se preocupou com a
descoloração dos cabelos, nem com a perda da virgindade da filha ou com a manha
do imposto de renda. O joelho doeu, o braço do violão empenou, e a TV foi
transferida para a cova da despensa. O mundo ia ficando menos mundo com o
passar do tempo, aumentando o espaço interior, o qual aparecia mais vazio a
cada réveillon, aniversário e carnaval. Seus dias se tornaram mais obscuros,
não havia tanta luz onde pudesse escrever o depositário de suas sensações, isto
é, a falta delas. E é no breu que a seleção natural acontece. Enquanto alguns
seres saem à caça de alimento, outros se recolhem à sua escassez, generalizada.
Tudo isso, no fundo, é muito animalesco. Inventamos paixões para nos afastarmos
dessa roupagem bestial que cobre nosso esqueleto, tentando nos posicionar num zênite
imaginário, com toda e qualquer racionalidade suficiente para distinguir-nos da
porção bichana que jamais sairá de nós. Não adianta, a selva é eterna. Chamamos
de cidade a selva onde permanecemos, vestidos e iludidos. O eufemismo do local
não afasta o caráter selvagem das pessoas em trânsito atrás dos seus
interesses, que nada mais são do que os próprios instintos, também disfarçados, remodelados à classificação darwiniana.
Até que um dia chega o punhal das horas, e passa rente à pele do presente,
deixando um rastro frio e excitante, à medida que desce em direção ao solo
líquido ou pantanoso das relações. Tudo é igual. O que ainda não é, um dia
será. Nos parques, nas praças, nas estações, há gente fingindo que a vida é
bela. São os populares atores sociais, indivíduos que tentam sair de si mesmos
para compartilhar a sobrevida com outros indivíduos. Tosca tentativa de negar a sua essência individual, sobrevindo carências, dependências e tais. Traga-me outras pessoas, que eu lhe dou o
melhor de mim. O pior, eu deixo para depois, quando eu estiver passeando
próximo ao cemitério das novidades. Ele sabe onde fica, talvez até o dia aproximado em que
passará por lá. Por enquanto, a dipirona se associa com a cafeína, para mascarar
a algia de mais um deslocado ente – cacófato intencional – quase andrógino de tanta
não adaptação, que já sobreviveu muito mais do que merecia...
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